No Ar Coquetel Molotov 2023. Cartaz. Reprodução
No Ar Coquetel Molotov 2023. Cartaz. Reprodução

Coquetel Molotov é uma arma química incendiária utilizada em guerrilhas urbanas. Há 20 anos é também o nome de um dos mais longevos e interessantes festivais de música no Brasil, sediado em Pernambuco, mas que já circulou por outras praças.

A edição especial que celebrará as duas décadas do No Ar Coquetel Molotov acontecerá no próximo dia 21 de outubro, a partir das 15h, no campus da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife, com 35 atrações em três palcos (Coquetel Molotov, Natura e Kmkaze), com mais de 12 horas de programação, incluindo Boogarins, Luedji Luna e Marcelo D2, entre outros.

O line up preserva características que ajudaram a consolidar o festival no calendário cultural brasileiro: diversidade, representatividade de minorias e o cuidado da curadoria em mesclar artistas consagrados e revelações são algumas delas.

FAROFAFÁ conversou com exclusividade com Ana Garcia, diretora do evento, e Benke Ferraz, guitarrista do Boogarins (o grupo se completa com o vocal e guitarra de Fernando “Dinho” Almeida, o contrabaixo de Raphael Vaz e a bateria de Ynaiã Benthroldo) – que apresentará o show Boogarins Toca Clube da Esquina, no festival. Leia a seguir.

A diretora do No Ar Coquetel Molotov Ana Garcia - foto: Hannah Carvalho/ divulgação
A diretora do No Ar Coquetel Molotov Ana Garcia – foto: Hannah Carvalho/ divulgação

CINCO PERGUNTAS PARA ANA GARCIA, DIRETORA DO NO AR COQUETEL MOLOTOV

ZEMA RIBEIRO: 20 anos de festival. Qual a avaliação possível dessa trajetória?
ANA GARCIA: Eu sempre acho um desafio avaliar a trajetória do Coquetel Molotov e não ficar super emotiva por algumas razões. Tem sido uma trajetória de resistência e sustentabilidade, manter um festival independente por duas décadas é uma prova de resiliência e temos conseguido encontrar uma forma sustentável, mesmo com muitas lágrimas [risos]. Enfrentamos diversos desafios financeiros, políticos, endêmicos e logísticos ao longo do caminho, mas sempre mantendo o compromisso de proporcionar essa experiência única do festival. O Coquetel tem sido um festival de inovação em termos de ser um dos primeiros a ser liderado por uma mulher como também de experiências, com marcas, público e ambiente. Temos conseguido promover a diversidade musical do nosso Brasil e do mundo, como também a equidade de gênero nos palcos. Temos nos destacado por ser um festival inclusivo. Acho que temos tido um impacto cultural importantíssimo para o fomento de uma cena musical independente tanto localmente como no Brasil, desempenhando um papel fundamental na promoção de novos artistas e criação de um espaço para a experiência musical.

ZR: De que forma a pandemia de covid-19 e seus efeitos posteriores afetaram o festival?
AG: Acho que temos dois pontos para falar sobre a covid que vai além do óbvio, que afetou todo o segmento de eventos e cultura financeiramente. Mas para o Coquetel Molotov foi um momento que tivemos que nos redescobrir e rolou uma energia criativa foda. Tivemos que nos reinventar e realizamos edições imersivas e tantos projetos nesse tempo que hoje parece tão distante. Isso mexeu muito com as nossas estruturas e a forma de enxergar o festival e a nossa comunidade e rede. Sinto que saímos um tico mais fortes. Mas encaramos um mercado completamente fora da nossa realidade, onde a logística está três vezes mais cara, cachês super altos, equipes enormes, todo mundo tentando tirar agora o que perdeu nesses dois, três anos. Além disso, muitas empresas faliram, mudaram de rumo ou venderam muitos dos seus equipamentos. Perdemos muita mão de obra. As primeiras duas edições pós-pandemia foram bem desafiadoras e acho que agora estamos entendendo melhor essa realidade. Ao mesmo tempo está rolando esse boom de festivais, onde temos mais de 50 festivais por mês! Acho que essa onda acaba em poucos anos.

ZR: Com duas décadas de estrada, quais as principais dificuldades em realizar um evento do porte do Coquetel Molotov?
AG: Sempre foi e sempre será o financeiro. Realizamos um festival independente com foco em fomentar a cena independente, em novos artistas, na cidade do Recife, em Pernambuco – fora do eixo Rio-São Paulo e em um estado que não tem mecenato. Soa quase impossível, não é? Mas não sei como, conseguimos. Temos tido relações com poucas empresas que enxergam a importância de fomentar a cultura e festivais que realmente fazem o que praticam. Então, a Natura tem sido uma grande parceira há anos. A Prefeitura do Recife também tem apoiado desde as primeiras edições. A Devassa já confirmou que estaremos juntos em 2024 também. A grande novidade este ano foi ter sido procurada pela equipe ESG [ambiental, social e governança, na sigla em inglês] da Nubank para incentivar a parte de Negócios do festival via Lei de Incentivo. Fiquei muito orgulhosa com isso, significa que de fato as nossas premissas estão sendo vistas por grandes empresas que não estão necessariamente focadas em música. Que isso seja só o começo de uma parceria.

ZR: A diversidade, em todas as suas vertentes, é, mais que nunca, um componente essencial do festival. Como foi chegar a esta arquitetura?
AG: Eu acho que tem sido uma pauta constante dentro do Coquetel Molotov e tudo foi rolando muito organicamente. Só assim para sentir a energia que só o nosso festival tem. Há muitos anos começamos a discutir a equidade de gênero nos palcos como também na nossa equipe e a partir disso as pautas foram se aprofundando. Mas entendemos que mudanças verdadeiras só acontecem quando colocamos pessoas diversas em cargos de lideranças, então, temos tido mulheres trans, negras e pessoas com deficiência ocupando cargos de curadoria e produção dentro do Coquetel Molotov e assim conseguindo enxergar esse reflexo na nossa programação e público.

ZR: Como se dá o processo de curadoria do festival? Destacando que 60% da programação é feminina…
AG: Sempre falo que é um quebra-cabeça. Escutamos muito o nosso público, todo começo de ano começa quase uma campanha para trazer certos artistas. O bom é que eles entendem a nossa preocupação em trazer lançamentos, novos nomes, etc. Também recebemos muito material, assistimos a muitos shows. Claro que temos as nossas limitações financeiras. Então, fica um quebra-cabeça de como fazer as coisas funcionarem. Quando anunciamos fiquei super orgulhosa do line up, quase todos os estados presentes, mostrando bem a diversidade musical brasileira. Muito Nordeste presente. Foi uma premissa deste ano, trazer essas cenas próximas para esta edição. Também tive muita colaboração, inclusive de outros setores da equipe. A maternidade me pegou este ano e me vi precisando mais que nunca da minha rede de parceiros para enxergar bem o que faz sentido. Como estamos há mais de cinco anos focados na equidade de gênero nos palcos, meio que flui naturalmente. O mercado ainda é muito dominado por homens, infelizmente na hora de programar precisamos ficar atentas. A DJ e produtora Idlibra faz a curadoria do Palco Kmkaze há dois anos e ela sempre traz nomes que estão dominando a cena eletrônica. Tenho aprendido muito com ela.

Boogarins - foto: Valeria Pacheco/ divulgação
Boogarins – foto: Valeria Pacheco/ divulgação

CINCO PERGUNTAS PARA BENKE FERRAZ, GUITARRISTA DO BOOGARINS

ZEMA RIBEIRO: Desde seu surgimento o Boogarins se notabilizou como o principal nome da psicodelia brasileira. Com mais de 10 anos de estrada, o que significa esse reconhecimento para vocês?
BENKE FERRAZ: 10 anos depois acho que significa muito mais pra gente esse reconhecimento do que quando a gente começou, ali, fazendo bastante atenção da imprensa gringa e depois do Brasil, como parte de uma nova onda de psicodelia. Acho que naquela época a gente acabava aproveitando menos desse tipo de rótulo, desse tipo de comparação, e ficava muito mais nessa vontade de provar que bebia de outras fontes, que tinha uma personalidade própria também ali, mas hoje acho que a banda está bem confortável e tem bastante orgulho de ser referência nesse recorte da música popular brasileira ou do rock brasileiro.

ZR: Acostumados a palcos importantes dentro e fora do Brasil, qual a sensação de estar nesta edição do Coquetel Molotov?
BF: Já temos um histórico de performances no Coquetel, inclusive até rola um meme de que o Boogarins é artista residente do festival. Mas acho que não podia ser diferente, já tem essa relação tão próxima de trabalhar no festival. Grandes festivais têm artistas que se repetem de tempo em tempo, como realmente um artista que carrega também a bandeira do festival e eu sinto que o Boogarins tem esse lugar, tanto pelo background indie rock dos dois, tanto do Boogarins quanto do festival, mas por flertar com várias outras coisas, com o experimental, com a MPB, coisas que sempre estiveram presentes nos line ups do Coquetel. Acho que todo show no Coquetel foi especial, já tocamos em edições em Salvador, em São Paulo, no interior de Pernambuco. E fazer agora pela primeira vez esse show do Clube da Esquina é um convite, para quem já viu os shows nossos no Coquetel também aparecer ali pra ver, como também o público de Recife, que está sempre se renovando, tanto o público da banda quanto o público do evento.

ZR: Clube da Esquina é um dos melhores álbuns de todos os tempos da música popular brasileira. Sua ligação com o rock progressivo é pouco apontada. Quero te ouvir um pouco sobre esse aspecto e sobre a ideia do grupo de homenagear ao vivo este álbum clássico que chegou aos 50 anos ano passado.
BF: É engraçado, porque o movimento mineiro, não só o disco, acho que se tornou muito uma referência, óbvia, da MPB, mas já na época ali dos anos 1980, 70, o jazz, os jazzistas americanos já estavam ali descobrindo os grandes clássicos desse repertório mineiro e acho que sim, que esse lado do rock progressivo, do rock psicodélico ficou meio camuflado no meio de todas essas referências mais adultas, eu diria assim, que dominaram esse repertório que virou realmente um marco para a cultura brasileira.

ZR: Que outros artistas que fazem esse trânsito entre a MPB, o progressivo e a psicodelia estão entre as influências ou chamam a atenção do grupo?
BF: Acho que para além do Clube da Esquina e as referências óbvias tropicalistas, que sempre foram muito marteladas assim pela imprensa falando da gente, tem as referências todas nordestinas também, né? O udigrudi que tem vários nomes mais obscuros, Marconi Notaro, Ave Sangria, mas também os grandes nomes realmente da MPB nordestina que estão muito presentes no nosso imaginário e na nossa discografia afetiva: Alceu [Valença], Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, O Grande Encontro é um disco que em Goiás foi um grande sucesso e não teria, acho, como ficar de fora desse aspecto psicodélico que misturaram isso e que também entraram nesse panteão de clássicos da MPB.

ZR: Durante o show vocês executam o álbum inteiro? Queria saber a dinâmica da apresentação, o que o público pode esperar de vocês neste show tão especial e quais as expectativas de vocês em relação a este encontro com o público pernambucano.
BF: O show surgiu com o convite, primeiramente do Multishow, de a gente fazer o Versões [programa do citado canal], e eles falavam em fazer versões de um artista específico, não de um disco inteiro. E a gente, nesse fluxo de nunca ter feito versões, de não ter um repertório já na bala da agulha, para tocar de um artista inteiro, a gente deu esse semi-truque, chamando de Clube da Esquina, mas enquanto artistas, não necessariamente como disco. Porque é assim que a gente foi apresentado a toda essa obra, pelos nossos pais, pelas nossas mães, que escutavam muito também essas canções e tudo o que vinha dos mineiros, Milton [Nascimento], Beto Guedes, Lô Borges, o material solo deles mesmo, pra gente foi introduzido como Clube da Esquina, sabe? Coisas que estão já bem distantes ali do disco original de 1972, até mesmo, sei lá, Flávio Venturini, 14 Bis, esse tipo de coisa a galera, em Goiás, pelo menos, ia acabar citando como Clube da Esquina, então a gente foca bastante no repertório do disco clássico, mas também passeia ali por uma pesquisa que é bem característica nossa, de sons que fizeram nossa cabeça, coisas de discos mais obscuros, como o disco amarelinho, que estrela o Beto Guedes, Toninho Horta, o Novelli e o Danilo Caymmi, que é um disco que flerta muito com o progressivo, que tem bastantes passagens instrumentais bem virtuosas, e aí a gente toca duas composições do Danilo Caymmi, que nem é mineiro [risos], mas que estão nesse disco, “Ponta Negra” e “Serra do Mar”. Um disco que nem está nos streamings, por exemplo, sabe? Para tornar esse show uma experiência bem especial, e nossa, também buscamos um repertório bem diferenciado, que pega também a galera de surpresa e dá esse teor de novidade para um show que poderia ser simplesmente um tributo.

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