Os Titãs lotaram o Allianz Parque de São Paulo em três shows de 16 a 18 de junho de 2023

O show Titãs, Encontro, não é um show, mas um culto punk brasileiro. Um acontecimento histórico e um exorcismo sem religião, mas com muita clareza sobre o bem e o mal. O bem é a música, o profissionalismo, a excelência estética, a potência de uma produção sobrenatural, afetiva, cheia de memória, respeito e reflexão: em vários momentos do show somos chamadas a, olhando para a história deles, olharmos para nós.

Tem Liminha no lugar de Marcelo Fromer. Tem a filha do Fromer, Alice Fromer, dando vida de novo à voz que não temos, e que grita. Tem Branco Mello, leve como um guri, falando de um tumor que não o deixou mudo, nem o destruiu. E cantando como somente uma alma punk pode cantar, lembrando que não sabemos nada.

Por alguns minutos estive entre dezenas de milhares de pessoas cantando, dançando, gritando, sorrindo e chorando, um refrão elementar do esclarecimento: “Não sabemos nada” e não temos religião! Temos e somos Rita Lee Jones, e Erasmo Carlos, o nosso rei, e gritamos de novo, cantando, chorando, em uníssono, como se deus estivesse apenas para esta prescrição elementar: “É preciso saber viver”, é este o conhecimento requerido, a crença, a fé, a dádiva e a conquista. 

Não cabe em palavras a imagem de excelência e o resultado rigoroso de Charles Gavin, na bateria, fazendo a gente acreditar de novo, e pela primeira vez. Na redemocratização, muitas coisas floresceram e deram as caras e esses caras punks, de São Paulo, inspiraram a gurizada que, como eu, cantávamos “Bichos Escrotos” mesmo antes de saber o que Jesus não ter dentes no país dos banguelas poderia querer dizer.

Eu era uma adolescente metida a punk – uma pirralha total – e achava que os Titãs eram mais inteligentes e interessantes que o Clash, porque eles eram mais sofisticados, eles faziam poesia. Arnaldo Antunes faz poesia, e Sergio Britto também – eu sempre soube, ha. Aliás, como são diversos e como Paulo Miklos é um artista esplêndido. Tony Bellotto parecia um guri, de novo, e havia e há, entre eles, um sentido de amizade e companheirismo que nos irmana, durante horas. É uma explosão de vida, de pertencimento.

Nando Reis pega o microfone e nos situa, como se fosse um corifeu brechtiano, a dizer que a música, a música dos Titãs, justifica-se por si só: “Estamos aqui”, afirmou, ao comentar a impressionante atualidade da banda e mencionar os quatro anos do pesadelo que nos assolou. A percepção de que estávamos celebrando o fim de uma guerra e o reencontro entre duas gerações de sobreviventes a duas ditaduras, em dois processos distintos de reabertura e lida com escombros civilizacionais é acachapante.

A gente grita, e também chora, e grita de novo, pulando, dançando, reivindicando quem nós pudemos ser e fomos. E canta, e lembra todas as letras, e segue cantando. Acordei com as pernas sentidas, e penso nas pernas de Arnaldo Antunes, vestido como um monge punk e patafísico, a nos lembrar que se adaptar é uma escolha que pode ser simplesmente vã e irrelevante. O quão irônico e triunfante foi assistir a um encontro familiar, doce, amoroso, dizendo que a alma punk nunca degenera, e sempre floresce.

Eu estava no início da adolescência quando me apaixonei pelos Titãs. Cantava tudo, e hoje sei o quanto não entendia quase nada, exatamente, senão na batida punk, na ira contra as babaquices, nos milagres poéticos que são tão claros para crianças, como as lições sobre as “flores”.

Há muitas maneiras de lembrar e falar de uma banda e de uma música tão enraizada em duas ou três gerações, uma música pop, um rock punk, paulista e brasileiro, que nos forneceu uma expressão de existência e um lugar no mundo que começava a se abrir e, agora, reencontra as próprias aberturas, quando o país tenta de novo uma reconstrução. A vulnerabilidade do Branco, a alegria miraculosa do Miklos, a doçura e a ternura entre Tony Belotto e todos os demais. Sergio Britto é careca! Há sol! 

Os fãs de Roberto Carlos devem sentir algo assim em um show dele, ou fãs dos Beatles, ou dos Rolling Stones. Sei lá. Para mim foi como se todas e cada uma das pessoas ali, ontem, tivessem se reencontrado como titãs. Nós, titãs, que nos amamos tanto. Obrigada, companheiros. Obrigada para sempre. Foi como uma festa de posse punk e patafísica, de quem se perdeu na selva, mas não na vida.

Katarina Peixoto é pesquisadora pós-doc de filosofia no Departamento de Filosofia da USP/FAPESP. Doutora em filosofia, trabalha com a história da filosofia do início do período moderno, na vertente racionalista. Trabalhou também como tradutora. jornalista e editora. É natural do Recife, foi manguegirl da primeira geração e ia aos shows do Titãs desde a época do colégio. Sempre preferiu Titãs ao Clash, e a todas as bandas dos anos 1980. Não compreende por que Charles Gavin estava com a camiseta do Náutico no show do Recife (ela imagina que tenha sido uma piada do Renato L com o Fred Zeroquatro, um torcedor do Sport, como se deve ser), e esteve no sábado, 17 de Junho, no Show em São Paulo, onde vive atualmente.

PUBLICIDADE

5 COMENTÁRIOS

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome