Nelson Triunfo flutua sobre a plateia do Palmeiras, usando capa que ganhou de James Brown - cena de "Chic Show"

O documentário Chic Show, de Felipe Giuntini e Emílio Domingos, iniciou espetacularmente a 15ª edição do In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical na quarta-feira, 14, e será exibido mais uma vez, neste sábado, 16, na área externa da Cinemateca Brasileira, onde acontecerá, em seguida, um baile da Chic Show, com DJs da equipe de som e presença de seu idealizador, Luiz Alberto dos Santos, mais conhecido como Luizão. Dirigido a partir do Rio de Janeiro, sob o selo Globoplay, o filme descortina o fenômeno subterrâneo da música negra na São Paulo dos anos 1970 em diante de modo vibrante, elucidativo e respeitoso, como nenhum paulista jamais havia feito. A black São Paulo, aprendemos, tem importância e poder de influência comparáveis à sempre reverenciada black Rio, e os diretores provam isso como dois e dois são quatro.

Basta dizer que o filme decifra, de modo provavelmente inédito, a centralidade da cena black-dançante paulistana para a formulação e o desenvolvimento de dois movimentos aparentemente díspares, mas irmãos na gênese a partir do fenômeno de orgulho negro que a Chic Show promoveu, quase sempre silenciosamente, para sucessivas gerações desde os anos 1970 até os 1990, e além. Mano Brown e Ice Blue explicam com acurácia por que o hip-hop brasileiro é filho da Chic Show. Salgadinho, da banda Katinguelê, Marquinhos Sensação, do grupo Sensação, e Péricles, ex-Exaltasamba, expõem o parentesco do pagode dos anos 1990 com os bailes gerenciados por Luizão.

Enquanto Salgadinho afirma que a Chic Show é mãe do pagode paulista, o rapper Rappin’ Hood crava sem medo de errar: a equipe de som foi e é uma espécie de Motown brasileira. Foi nos bailes, por exemplo, que o jovem Rappin’ Hood conheceu o jovem Sabotage, segundo ele lembra. Foi nos palcos da CS que Mano Brown e Ice Blue se apresentaram pela primeira vez, como uma dupla, Brown & Blue, antes de formarem os Racionais MC’s.

Apesar de a relação entre o hedonismo da Chic Show e a sisudez do hip-hop tenha sido de choque e conflito enquanto a primeira geração era suplantada pela segunda, como reconhecem Brown e Blue, nas entrelinhas é possível compreender que os salões hedonistas da equipe de som fermentaram muito da consciência racial que as primeiras gerações do hip-hop nacional vieram injetar no século 21. Driblando a repressão sempre vigente por parte da sociedade não-preta, os dançarinos de sucessivas gerações praticaram uma resistência que avançou subterrânea, mas incessante, até que a consciência negra se tornasse voz corrente, de forma mais firme a partir dos anos 2000.

O documentário de Giuntini e Domingos contraria um dos sensos comuns frequentes sobre a chamada cultura black, de que os bailes paulistas dos anos 1970, assim como os cariocas, afastaram o público negro da música brasileira por excelência (leia-se samba, bossa nova, tropicália), por serem primariamente fundados no funk original, na soul music e, mais adiante, na discothèque, todos estadunidenses de nascença.

Vários dos entrevistados atestam que música brasileira e música estrangeira conviveram em razoável harmonia na Chic Show, em particular nos shows de multidão que pretejaram a raiz italiana do ginásio do Palmeiras (como lembram matreiramente Mano Brown e Luizão). Por ali passaram nomes como Jorge Ben Jor, Gilberto Gil, Sandra de Sá, Carlos Dafé, Tim Maia, Luiz Melodia e Djavan, e os quatro primeiros participam do filme com depoimentos saborosos.

A narração do dançarino de rua pernambucano Nelson Triunfo sobre sua atuação na plateia do show de James Brown na Chic Show, materializado por Luizão, rende alguns dos momentos mais divertidos do filme – e eles são muitos, em depoimentos bem-humorados dos pagodeiros ou nos comentários invariavelmente geniais tecidos por um Mano Brown em estado de graça.

Nas falas de cantores, rappers, DJs, radialistas e frequentadores, a emoção parece estar sempre por um triz, pronta para brotar em lágrimas involuntárias que atestassem a grandiosidade da história que se está contando. Os olhos de artistas, produtores e consumidores brilham úmidos, mas nunca explodem em choro, retrato talvez de que há sofrimento represado por baixo da luta que permitiu e permite a existência da Chic Show e de seus frutos. Ninguém chega a chorar, com exceção de um personagem, o maestro da experiência e do documentário, Luizão, na cena mais catártica do documentário – e são muitas as catarses que passam pela tela durante 90 minutos. A compreensão cultural, mas também política sobre o Brasil dos anos 1960 aos dias atuais fica mais completa com o advento de Chic Show.

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