"Migrants". Capa. Reprodução

O cantor e compositor cabo-verdiano Mario Lucio está de volta ao Brasil. Advogado de formação e ex-ministro da Cultura de Cabo Verde, o artista faz pequena turnê por Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, apresentando seu novo álbum, “Migrants” (Banzé, 2022), disponível nas plataformas de streaming.

Acompanhado da banda Os Kriols, formada por Rui Ferreira (baixo, piano e coros), Sofia Portugal (voz, flauta e percussão), Telmo Sousa (guitarra e coros), Ricardo Coelho (percussão e coros) e Tiago Manuel Soares (percussão e coros), Mario Lucio (voz e violão) se apresentou nas edições do Mimo em São Paulo e no Rio de Janeiro e ainda cumpre agenda no Mimo Itabira (Pico do Amor, s/nº, Campestre, dia 19, às 23h, com entrada franca) e no Clube Manouche (Casa Camolese, Rua Jardim Botânico, 983, subsolo, Rio de Janeiro, dia 20, às 21h, com ingressos entre R$ 65,00 e 130,00).

A obra de Mario Lucio em qualquer vertente – é também escritor e pintor – sempre se pautou pelo engajamento em causas humanitárias, na luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Seu trabalho, artístico ou político, é fruto de seu desejo de promover a paz e a harmonia. “Migrants”, seu 10º. álbum, é ótimo exemplo, levando o ouvinte, entre mornas, funanas, batuques e coladeiras, a um passeio ancestral, ao mesmo tempo provocando reflexões e convidando à dança.

“Migrants” é um tributo musical a todas as pessoas que procuram outro território para viver, realidade bastante atual, com motivações as mais diversas. Impossível não traçar um paralelo com a migração forçada pela escravidão, embora esta não seja uma realidade que ficou no passado, para além da oficialidade, tema abordado na entrevista que o artista concedeu com exclusividade ao FAROFAFÁ.

O cantor e compositor Mario Lucio. Foto: Jorge Simão/ Divulgação
O cantor e compositor Mario Lucio. Foto: Jorge Simão/ Divulgação

ENTREVISTA: MARIO LUCIO

ZEMA RIBEIRO – Você volta ao Brasil num momento de retomada das políticas públicas de cultura, destruídas pelo último governo. O Ministério da Cultura brasileiro acaba de anunciar o maior volume de recursos aportados no setor em todos os tempos. Como ex-ministro da Cultura de Cabo Verde, como você recebe tal notícia e observa essa movimentação em torno dessa reconstrução no Brasil?
MARIO LUCIO – Qualquer nação que se preze e que tenha a noção de que não existem nações sem culturas, logo que essa nação deseja prosperar, superar os defeitos e os malefícios, como o ódio, a raiva, a ignorância, o maior setor de investimento deve ser o setor da cultura, junto com o da educação. Daí que o governo Lula anunciar um investimento financeiro, mas também político, forte na cultura é um sinal da vontade e da seriedade e também da compreensão da importância que a cultura tem nas sociedades e, particularmente, na nação brasileira, ainda em construção.

ZR – “Migrants”, título de seu mais recente e premiado álbum, aborda uma questão atualíssima. Você volta ao Brasil no período em que se celebra a abolição da escravatura, que o movimento negro considera, com razão, a falsa abolição, já que o país ainda tem uma triste realidade de trabalho análogo à escravidão. Dentro do tema de uma mesa de debates de que você participou no Mimo São Paulo, quais as principais aproximações possíveis entre o tráfico de pessoas escravizadas do período colonial e a migração, quase sempre forçada, da atualidade?
ML – Primeiro, abolição é um termo de marketing. Nós, somos do século XX, começamos a dar alguma importância ao marketing, mas isso já existe e já existia desde os tempos dos sumérios e dos egípcios, depois os gregos e os romanos. É muito importante quando eles mandavam seus pintores, os poetas, os griôs para falar do rei, do reino, das epopeias e das façanhas. Então, quando houve a vontade de acabar com a mão de obra escrava oficial como fonte de riqueza, ou como material ou ferramenta de produção, foi porque a Inglaterra já tinha criado máquinas. Então tinha uma concorrência muito grande, que era a mão de obra forçada e gratuita, praticamente, dos escravos. Então criaram uma lei, a lei que interditasse o comércio de escravos. Fizeram esse lobby, usaram a força e conseguiram fazer isso sobre monopólios que já estavam muito debilitados, como é o caso de Portugal e de Espanha. Então, o termo abolição foi um termo muito bem escolhido, porque “vamos abolir, vamos banir”, como se fosse uma elevação de consciência, um ato generoso em prol da espécie humana. Não, o que houve não foi uma abolição, houve uma interdição de comércio, tanto que depois dessa interdição, mais 11 milhões de seres humanos africanos foram traficados. Agora é preciso lutar, hoje com as novas ferramentas legais, para que realmente a escravatura seja abolida, como foi abolido o canibalismo, queremos abolir a mutilação genital, a prática do sacrifício humano, sabe? São várias práticas culturais, econômicas e outros que já não são aceitáveis há muito tempo e continuam por aí, de modo clandestino, então não foi ainda abolido. Combater uma doença, como combater a lepra, a gente combate, com medidas sanitárias, mas declarar abolida a lepra, isso seria uma conquista da medicina, realmente, que não volte e não tenha possibilidade de existir, como algumas doenças foram extirpadas da espécie humana. Mas a escravatura existe, continua, no Brasil e em vários lugares do mundo, ainda hoje. Então é preciso termos essa noção. Agora, qual a sua relação com a migração? Ora, a escravidão foi uma migração forçada. As pessoas foram arrancadas de suas terras natais, arrancadas das suas nações, famílias e todas as suas referências. É uma migração forçada! Hoje continua a haver uma migração forçada, que são pessoas a fugir da guerra, da fome, da perseguição, continua a haver essa migração forçada. São formas de escravidão, ora do corpo, ora do espírito, ora da mente, porque uma pessoa com medo não é uma pessoa livre, uma pessoa perseguida não é uma pessoa livre, até que encontre amparo. Todas essas formas devem ser abolidas, porque a perseguição a interdita. Temos que lutar para que a espécie humana realmente seja livre na sua plenitude e que dependa de cada um a sua liberdade. Essa já é uma questão intrínseca, individual, mas essa possibilidade primeira tem que começar pela lei, que interdite isso de forma coletiva e não deixá-la oficial.

ZR – Além de nomes fundamentais da cultura cabo-verdiana, você mesmo um deles, como Cesária Évora [1941-2011] e Mayra Andrade, você já manteve colaborações com músicos brasileiros. Que nomes de nossa música você tem ouvido e te chamam a atenção?
ML – Eu já colaborei com vários músicos contemporâneos brasileiros, primeiro foi com Paulinho da Viola e Léo Gandelman, depois colaborei com Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan, o jovem Chico Chico [que fará participação especial em sua apresentação no Manouche], mas também com músicos instrumentistas, como Serginho Trombone, já colaborei com muita gente. Mas as minhas referências são muito mais antigas. Eu comecei aos cinco, seis anos de idade, a ouvir Luiz Gonzaga [1912-1989], numa mercearia que tinha perto da nossa casa, e tinha o disco “Asa Branca”, e também ouvi muito Teixeirinha [1927-1985], lá do Sul, depois Roberto Carlos, Benito di Paula, sem falar de toda a corrente tropicália. Somos muito próximos, Cabo Verde tem uma ligação muito forte com a música do Brasil, não só porque nós trouxemos muita música para cá no século XIX, e antes também, a partir do século XVI, como também os marinheiros brasileiros levaram muita música para Cabo Verde quando tocavam o porto para se abastecerem na travessia do Atlântico.

ZR – Há uma pergunta que eu sempre faço ao entrevistar músicos de países de língua portuguesa: há uma equação que não fecha na relação do Brasil com esta comunidade, que é o fato de consumirmos mais música americana ou europeia em língua inglesa que músicas de artistas lusófonos. A seu ver o que explica este descompasso?
ML – Eu primeiro queria corrigir: eu não sei o que são artistas lusófonos; sei que são artistas que cantam na língua portuguesa, com maior afinco em Portugal. De resto, na Guiné Bissau, Angola, Cabo Verde, Moçambique, São Tomé, nós cantamos nas nossas línguas maternas. Só Moçambique tem 25, 27 línguas, Guiné Bissau tem 25, Angola 31 ou mais, Cabo Verde tem duas, mas nós cantamos em crioulo. Então, não existe música lusófona de nenhuma forma [risos], sabe? Mas o Brasil consome muita música americana porque o Brasil tem um sistema de rádio que é único no mundo, que é um sistema de pendor comercial muito forte e para sobreviver tem que tocar o que se impõe, o que vem do Norte. Mas também não é de descartar, é de louvar festivais como o Mimo, ou outros que eu já fui pelo Brasil e que trazem músicas da África e de outras regiões do mundo para as pessoas escutarem. Mas o Brasil é muito grande, então para um carioca ouvir uma música do Pará e alguém do Pará ouvir uma música baiana, é muito complexo uma música ser global no Brasil. Enquanto que as rádios, a internet, a televisão nos bombardeiam todos os dias com um investimento massivo para ouvir a música inglesa. Felizmente, ainda no Brasil, tem mais dose do que em outros países do mundo, onde você vai a festivais e 90% do cartaz é música anglo-saxônica.

ZR – Sua banda se chama Os Kriols. Gostaria de ouvi-lo um pouco sobre a relação de trabalho e amizade estabelecida com os músicos que te acompanham.
ML – A minha banda eu apelidei-a de Os Kriols porque são cinco portugueses, quatro rapazes e uma menina, todos da região do Porto, que eu fui conhecendo aos poucos, eles são amigos há muito tempo, cada um com a sua profissão, a sua banda, fazendo coisas a solo, músicas completamente diferentes da minha, mas conheciam muito bem a minha música e foi por causa disso que eu os conheci. E quando começamos a tocar juntos, eu lhes disse: “vocês me colonizaram, agora eu vos criolizo” [risos], trocaram a colonização pela criolização. Então chamei-os de Os Kriols, e são naquele sentido de que somos a nova geração, reciclamos, sintetizamos e também invertemos a correlação do mundo, por isso é bonito, eu que sou crioulo criar uma banda com cinco portugueses e chamá-los de Os Kriols. Somos muito amigos, é uma banda que tem uma energia muito especial no palco, porque são músicos muito generosos, há uma relação muito forte e todos aprendemos uns com os outros. Aprendemos a ética, aprendemos a música, a estética, aprendemos a convivência, como é que se constrói uma relação musical e pessoal a longo prazo. Porque eu, pessoalmente, prefiro uma boa pessoa e mau músico do que um bom músico e uma má pessoa. Isso existe, então por sorte, eu sempre estive bem rodeado de seres humanos extraordinários. Todos nós temos nossos defeitos, mas logo a seguir isto se reflete no palco, há uma energia muito boa, uma sinceridade, uma verdade muito grande.

ZR – O Maranhão possui uma manifestação típica de sua cultura popular, chamada de tambor de crioula, cuja música é produzida por três tambores, com a dança se desenvolvendo em círculo até o ápice, a umbigada, quando as mulheres convidam as outras para o centro da roda. Você conhece? Se sim, o que acha?
ML – O Maranhão tem várias coisas da cultura cabo-verdiana mesmo. A umbigada é uma delas, porque a umbigada é tipicamente uma manifestação das ilhas de Cabo Verde, chamado colá, que as pessoas dançam em pares ou não, mas procuram parceiro para darem uma umbigada. É uma dança de um pendor sensual e sexual muito forte, isso tem a ver com o momento da liberação dos escravos, que passaram confinados durante muito tempo, sem liberdade, e também tomaram liberdade e libertinagem, e tinham direito a isso. São tocados com tambores de origem militar, de Portugal, com baquetas. Essas tradições nordestinas, são várias, são dezenas de tradições que existem no Nordeste e mais do que no Nordeste, vai até Belém do Pará, que são manifestações-sínteses, danças banto, porque não têm tambores com essa característica, não são mandingas, são danças ou manifestações sintéticas nascidas em Cabo Verde exatamente por causa do cruzamento dessas culturas, que chegaram ao Brasil e viraram evidentemente manifestação porque a sociedade tem a mesma característica, o mesmo código de formação. Há uma longa história de confluências entre o que existe no Brasil e o que existe em Cabo Verde.

ZR – A base dos shows no Brasil será o repertório do novo álbum? O que o público pode esperar? E você, quais as expectativas para estes reencontros?
ML – Claro, porque tem muita mensagem para passar, mas eu também faço várias músicas do meu repertório clássico, de músicas que fizeram muito sucesso, que as pessoas conhecem, isso dá um show muito brilhante, eletrizante. É um show para se ouvir, é um concerto, o novo disco é um disco muito elaborado, é gostoso de se ouvir, as misturas, ouvir Cabo Verde moderno, e ao mesmo tempo também ninguém consegue ficar sentado com aquele ritmo africano mais profundo, mais trabalhado para transe mesmo. De modo que é um concerto que as pessoas passam por vários sentimentos, tem sentimentos de euforia, de contemplação, tem sentimentos mesmo de tristeza, quando eu toco a música “Migrants”, por exemplo, e falo da migração; de repente também voltamos ao tema da festa e as pessoas pro fim têm uma catarse. O concerto, mesmo que seja para milhares de pessoas, passamos por vários sentimentos e a vida tem beleza nisso mesmo, a gente poder transferir os nossos sentimentos e tocar o outro e transformar.

ZR – Sua obra musical é diversa, fruto de suas vivências, desde a infância no país natal, até o curso de Direito em Cuba, aliando um mergulho nos ritmos ancestrais que marcam a cultura cabo-verdiana e tua paixão pelo rock. Beber de todas as fontes, sem preconceitos. Seria este um conselho de Mario Lucio a jovens que estejam pensando em se dedicar a uma carreira artística?
ML – Bom, já que fala de conselho [risos], se os jovens me pedirem conselhos, eu só posso partilhar a minha própria experiência. Então a minha própria experiência é que eu sempre fui eu mesmo, um outsider dentro da história da música de Cabo Verde, nunca toquei só coladeira, só morna, só funana ou só o batuque, toquei aquilo que vinha de dentro de mim e que já era desde criança minha percepção do universo, do silêncio, da solitude, mas também dos sons, muitas vezes inaudíveis ou inescutáveis, como os pássaros, a folhagem, o vento, as pessoas a caminhar, ouvir de longe o bater do pilão, o ruído do balaio a peneirar o milho. Todos esses sons me formaram e depois tudo que eu fui ouvindo, gostei e incorporei a mim. Eu sou isso mesmo, eu gosto de ser autêntico, não tenho outra escolha e isso vem na minha música, a música sai como ela é. Todos os meus arranjos vêm de dentro da música pra mim. Eu vou escutando a música e escuto os instrumentos que não estão lá, e eu vou colocando e a música ganha essa cor, essa polirritmia, que é uma coisa fundamental em mim e essa polifonia também. São duas coisas que eu gosto, e que é minha mistura da África e da Europa [risos]. Eu diria às pessoas que pratiquem o autoconhecimento, se aceitem como são e expressem exatamente [isso]. Cada exemplar no universo é um exemplar único, então repetir seria uma pena, nós queremos saber o que esse exemplar único tem para dar ao mundo. Que cada um seja o mais genuíno possível.

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Ouça “Migrants”:

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