O rádio já teve algumas mortes decretadas ao longo de sua existência, como quando do advento da televisão e, posteriormente, da internet. Segue vivíssimo e acabou por integrar-se a novas tecnologias que permitem aos ouvintes, experiências que estão para além da audição. Se a palavra ouvinte já não dá conta de traduzir a relação estabelecida entre rádio e usuário, José Paes de Lira, o Lirinha, vocalista do Cordel do Fogo Encantado, com uma sólida e interessante carreira solo, está certo ao afirmar, em entrevista exclusiva ao FAROFAFÁ, que “palavras (…) precisam ser encontradas ou inventadas”.
Em seu novo disco, que chegou hoje (28) às plataformas de streaming, Lirinha subverte a lógica. Já que estamos falando em rádio, convém lembrar que músicas (e consequentemente álbuns) costumam tocar no rádio e não o contrário. Um cachorro morder um homem não é notícia, mas o contrário sim, como rezam as cartilhas de jornalismo: o pernambucano traz para dentro de seu álbum uma estação de rádio, cósmica, fictícia, que leva por nome o título do trabalho: “Mêike Rás Fân”, grafado na capa (de Rodrigo Sommer) como um anúncio luminoso em neon – como as placas que indicam que uma rádio está no ar, ao vivo.
Tanto em seu trabalho com a banda, quanto solo, Lirinha desenvolve uma experiência interessante e muito particular no trânsito entre a música (o canto) e a poesia (a fala), intensificada neste novo trabalho, que sucede “Lira” (2011) e “O Labirinto e o Desmantelo” (2015) – na sequência de “Mêike Rás Fân” virá uma série especial de podcast com pesquisas sobre a Rádio Drama.
Ao ouvinte cabe aceitar o convite de Lirinha e embarcar em uma viagem que começa no disco, que tem por tripulantes seus convidados Dan Maia, Gabi da Pele Preta, Iara Rennó, Lana Balisa, Nash Laila, Orlando Melo, Parrô Melo, Paulo Kishimoto e Sofia Freire – além da inteligência artificial (que produziu a voz sintetizada que abre “Antes de Você Dormir”, que fecha o álbum).
ENTREVISTA: LIRINHA
ZEMA RIBEIRO – Quero começar pelo título do álbum, que dá nome tanto ao novo trabalho quanto a uma estação fictícia. Podes aprofundar um pouco a ideia e o conceito por trás dele?
LIRINHA – O objetivo era criar um título, com palavras inventadas, para ser o nome dessa fictícia rádio cósmica. A ideia era buscar uma sonoridade que representasse essa invenção e seguisse assim, na estética do sonho, num novo universo, um outro espaço-tempo. A capa do álbum reflete esse desejo de se criar um letreiro, como se fosse exposto na fachada da estação radiofônica.
ZR – A atmosfera deste teu novo álbum é onírica. Por mais que as tecnologias avancem, o rádio mantém sua presença e importância na vida das pessoas. Queria que você comentasse a importância deste meio de comunicação em tua formação.
L – Escutei a primeira poesia numa rádio de Arcoverde, sertão de Pernambuco, cidade que nasci e me criei. Era a transmissão de um Festival de Cantadores e Repentistas. Muitas rádios da região e também da capital, dedicavam espaços pra essa poesia, construída na oralidade da população, cumprindo assim um importante e desconhecido papel histórico, na eletrificação e amplificação dessa oralidade. A rádio promove o diálogo de palavras imagéticas e do corpo da voz com a tecnologia, com a eletricidade.
ZR – É um álbum que dá continuidade a suas experiências de canto-falado, que tornam a audição de tua obra uma experiência muito particular para quem a ouve. Como é, em teu processo criativo, essa delimitação que é ao mesmo tempo interseção? Gosto de pensar, entre o canto e a fala de tuas canções, na metáfora das águas lambendo as areias na beira do mar: a gente sabe o que é areia e o que é mar, mas há um ponto em que eles se tocam.
L – Entendi com o tempo que a minha atuação artística é na zona de fronteira entre a poesia declamada e a música como paisagem sonora. Hoje penso que mais do que fronteira, é um lugar que essas regiões se sobrepõem, se tocam. Entendendo isso, realizo uma viagem pra dentro da minha própria expressão, um mergulho onde tento experimentar novas criações, ir além dos limites que conheço, procurar novas possibilidades pra essa coreografia da poesia em voz alta com a música.
ZR – Você ficou conhecido como o vocalista e letrista do Cordel do Fogo Encantado, banda que voltou às atividades após uma parada, mas também tem um trabalho solo consistente. No entanto, mesmo o teu fazer que chamamos solo é coletivo, no sentido de agregar artistas muito especiais em participações idem. Quero te ouvir sobre as escolhas para este novo trabalho.
L – As participações vocais foram pensadas como textura no diálogo com a minha voz. Arranjos vocais foram procurados através da força dos artistas convidados. Gabi da Pele Preta, Iara Rennó, Dan Maia, Nash Laila, Lana Balisa por exemplo. O timbre feminino era muito importante pro que eu desejava fazer. Os arranjos instrumentais harmônicos também. Convidei músicos diferentes para cada música, como Paulo Kishimoto que acompanha Pitty, Thomas Harres (Gal Costa [1945-2022], Jards Macalé), o maestro Parrô Melo que é da tradição sofisticadíssima do frevo pernambucano, mas que arranjou músicas lentas no meu álbum. O sanfoneiro Orlando Melo da minha cidade, fã de Dominguinhos (1941-2013) e que ouviu a música “Oyê”, que ele participa, numa noite de São João, num sítio que em estávamos recolhidos na pandemia.
ZR – Em “O Campo é o Corpo” percebo uma sutil citação e homenagem a João Gilberto (1931-2019), com sua “Ho-ba-lá-lá”, uma das poucas composições do inventor da bossa nova. Isso faz sentido ou me enganei? Qual a tua relação com o universo de João e da bossa nova como um todo?
L – Sim. Você foi o primeiro que percebeu a homenagem. Sinto que João Gilberto construiu suas letras, nessas raras autorias dele, buscando a poesia da sonoridade das palavras e do ritmo delas também. Pra mim, a bossa nova, mais especialmente João Gilberto, é resultado de profundas e intensas experiências da relação da voz com as ondas sônicas. Quem desejar conhecer os mistérios dos espectros do grão da voz na música do mundo, deverá ouvir também João Gilberto. Mas a música foi feita pra inauguração do campo Dr. Sócrates (1954-2011), da Escola Florestan Fernandes (1920-1995) do MST em Guararema/SP. E nasceu do pensamento: “o campo é o corpo”.
ZR – “Mêike Rás Fân” é um álbum concebido entre 2020 e 2022, quando passamos por uma pandemia que acabou agravada por um desgoverno. É um disco esperançoso. Foi essa a intenção?
L – É a esperança de ser mais do que somos. Brotar além do nosso mundo. A ideia de que a poesia é uma realidade aberta, ainda em processo. E que a história ainda não acabou, há palavras pra encontrar. Palavras que precisam ser encontradas ou inventadas para o entendimento e desconstrução de uma sociedade profundamente injusta.
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Ouça “Mêike Rás Fân”: