A Kosmik Band. Da esquerda para a direita: Twanguero, Nanan, Enzo Buono e La Charo. Montagem: Thiago Iglesias. Divulgação
A Kosmik Band. Da esquerda para a direita: Twanguero, Nanan, Enzo Buono e La Charo. Montagem: Thiago Iglesias. Divulgação

Formação e sonoridade da Kosmik Band traduz conceito de “aldeia global” do teórico Marshall McLuhan; a música da banda formada por dois argentinos, um brasileiro e um espanhol, é ao mesmo tempo tecnologia e medicina

Os argentinos Enzo Buono (guitarra e produção) e La Charo (voz), o espanhol Diego “Twanguero” García (guitarra) – que tem um Grammy latino na bagagem – e o brasileiro Nanan (guitarra) formam a Kosmik Band, grupo que soma suas experiências individuais em palcos mundo afora com conceitos como a música como medicina, com seu poder de cura, e a “aldeia global”, do canadense Marshall McLuhan, que apontou o encurtamento de distâncias a partir das tecnologias eletrônicas, o que também pode ser a própria música e as ferramentas para fazê-la, às vezes à distância, seja por questões geográficas ou pandêmicas.

Transatlântico é um bom adjetivo para definir o grupo: mas o oceano que separa geograficamente Brasil e Argentina da Espanha une o quarteto em seus interesses pela espiritualidade indiana, a alegria africana e os ritmos latinos que desembocam em leituras muito particulares de mantras, reinventando-os em um convite para dançar.

A Kosmik Band se prepara para lançar mês que vem seu disco de estreia, intitulado “Tudo está bom” – a faixa-título foi o primeiro single disponibilizado pelo grupo, em setembro passado. Amanhã (11), é a vez de “Mama” chegar às plataformas, mais um aperitivo do disco vindouro (faça a pre-save). A música reverencia as mães, a figura materna, e o videoclipe (que o leitor assiste antecipadamente com exclusividade no Farofafá; veja abaixo) traz imagens dos bastidores das gravações, de que tomam parte os congoleses Mermans Mosengo (baixo e percussão), Nseka “Wikilo” Bimuela (guitarra), Loguylo Mabungu (bateria) e Jason Tamba (guitarra acústica). Na faixa Nanan canta versos em português e espanhol, e os coros, de Mosengo, Mabungu, Tamba e Chella Mputu, são cantados em lingala, língua franca de Kinshasa, capital do Congo.

A Kosmik Band se apresenta sábado (12) no Ama Fest, em Mercedes, Buenos Aires, de onde o guitarrista Nanan conversou com exclusividade com Farofafá.

ENTREVISTA: NANAN

A Kosmik Band. Nanan é o terceiro da esquerda para a direita. Foto: divulgação
A Kosmik Band. Nanan é o terceiro da esquerda para a direita. Foto: divulgação

ZEMA RIBEIRO – Como vocês se conheceram e como surgiram as primeiras ideias de se reunir em um grupo?
NANAN
– Enzo tinha um convite, por parte de um empresário chamado Alex Pryor, para fazer um trabalho com a Erva Mate Guayaki [empresa multinacional (Brasil, Argentina, Estados Unidos e Paraguai), que atua na região do Parque Nacional do Iguaçu], que é uma empresa B [selo de responsabilidade ambiental e social, espécie de ISO, atribuído a empresas que garantem retorno às comunidades envolvidas em suas cadeias produtivas], uma B Corp, são empresas que têm um impacto positivo no meio ambiente, e ele precisava de alguém para fazer a tradução e acompanhá-lo nesse trabalho, que seria em Guarapuava, no interior do Paraná, um trabalho que envolvia também as etnias Guarani e Kaingang. Eu, na verdade, era professor do projeto Playing For Change Brasil, na escola Kajuru, ficava a algumas quadras da minha casa, então eu aproveitava para dar essa aula de contraturno pras crianças lá, eu lecionava inglês, e acho que alguém, o François [Viguié, ativista], do Playing For Change, mostrou pro Enzo um vídeo meu tocando com as crianças e ele sentiu uma conexão, me convidou para acompanhá-lo nesse trabalho em Guarapuava e a gente foi junto. Acho que foi isso, foi um amor assim, musical, aos primeiros acordes, que a gente se conectou num quarto de hotel e começou a conversar sobre esse projeto de mantras e cânticos do mundo, que ele já tinha vontade de retomar, que antes se chamava La Oneness Band, e que agora a gente, com minha caminhada, com minha trajetória com o circuito de música-medicina, comitivas indígenas, a gente podia juntar, né? Eu tinha participado de um grupo de cânticos do mundo, chamado Omundô, em Curitiba, então eu tinha um repertório também, de músicas folclóricas do mundo, e a gente começou ali a criar os primeiros arranjos já, acho que alguns meses depois fui convidado para ir para a Argentina, onde a gente fez a primeira gravação juntos, o primeiro single, chamado “Juntos em um”, uma música que foi gravada em oito idiomas diferentes. Então, ali eu sentia que eu ia não só representar a música, o Brasil e a língua portuguesa dentro desse projeto global, mas a gente já tinha muitas composições que a gente começou a desenvolver desde esse primeiro encontro em 2018.

ZR – Como é conciliar diferentes línguas, geografias e influências na sonoridade da Kosmik Band?
N
– Sinto que a gente começou assim, já, né? Fazendo uma música que foi gravada em oito línguas, né? “Juntos em um”, “Together’s one”, “Juntos unidos”, ou seja, o nosso primeiro trabalho já foi, na verdade, um clarão de luz em muitas línguas. Então eu acho que a Kosmik já começa com essa bênção de uma casa de força da Índia, que é a Ekam, onde se reúnem pessoas do mundo inteiro, então, por ter um público já que é do mundo inteiro, naturalmente a gente tem vontade de traduzir no mesmo repertório muitas raízes, muitas sonoridades. Então acredito que acaba sendo divertido mesmo conciliar tudo isso, porque é como uma receita, são receitas que a gente vai criando, de um mantra que tem a ver com o tango argentino ou de uma cúmbia que traz um canto indígena. Então são texturas que a gente vai experimentando e naturalmente a gente sente quando há uma ressonância, quando há um bom resultado, quando a gente acerta, quando a gente se sente bem com isso, quando a música evoca mesmo uma energia que a gente sabe, naquele momento a gente sabe que está no caminho certo.

ZR – É impressionante a força da influência africana na música do grupo. A música brasileira é herdeira direta dessa fonte inesgotável. Embora o grupo seja, em si, um perfeito retrato da riqueza e diversidade musical, seria possível dizer que a África é mãe e síntese do som de vocês?
N
– Naturalmente, por conta de a própria brasilidade ser fundamentada nos ritmos de África. O mais profundo que o Enzo colheu do Playing For Change vem dos países africanos também, de seu instrumento, que é a guitarra. Eu acredito que, como a guitarra rítmica do Enzo evoca naturalmente África, isso vira um elemento central também do tipo de mantra que a gente traz, das raízes que a gente traz. África mãe, o berço das civilizações, naturalmente vai ser o berço de todos os ritmos, de todas as harmonias também. A gente pode dizer que sim, África é mãe e síntese do nosso som.

ZR – Apesar dessa riqueza e diversidade, o racismo ainda é muito forte no Brasil, um país em que boa parte da população ainda tem uma mente escravagista e essa violência e intolerância recrudesceram sob o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, que está chegando ao fim. Prova disso é o aumento do número de ataques e violências contra terreiros de religiões de matriz africana. Como você avalia essas questões?
N
– Pra gente é uma tristeza muito grande qualquer tipo de intolerância, vai contra o que a gente está propondo nesse projeto, que é essa grande roda da nossa aldeia global, celebrando, honrando a nossa ancestralidade. É uma incoerência muito grande negar África ou negar tradições antigas da humanidade porque são ciências que fazem parte da nossa composição também como seres humanos. Felizes com esse respiro do Brasil e contentes assim de saber que o centro da mandala vai estar vibrando outra energia agora, que a propósito, se coloca com mais acolhimento, com mais diversidade. Isso é tudo que a gente busca nesse projeto, a gente se alegra muito com isso.

Mama. Capa do single. Reprodução
Mama. Capa do single. Reprodução

ZR – Dois singles lançados para anunciar o álbum de estreia, que sai mês que vem. O que podes adiantar do que vem por aí?
N
– Olha, a gente convida para uma experiência, uma viagem sonora profunda, que vai levar a gente para lugares dentro e fora, introspectivas e de conexão com essa imensidão que é a vida, que é o sol, que é a lua, que é a floresta, que é tudo o que a gente canta através desses mantras, evocando também abundância, prosperidade, essa chama da luz dourada que a gente canta, que é o que a gente chama de unidade também, que tem a ver com o sentimento que bate mesmo no peito da gente. Então, apresentar essas músicas para vocês é como compartilhar medicinas que estão aí para ativar os corações por toda nossa aldeia global. Vem aí uma versão inédita de “Casa da floresta”, celebrada com a linhagem mesmo dos Wailers e do filho do Bob Marley, a banda do Damian Marley [o baterista Courtney Diedrick toca na nova versão desta música de Nanan, lançada há sete anos, uma das faixas do disco], e a gente fica feliz, assim, de entregar uma celebração mesmo. A gente tem a benção também desse tema, nesse álbum, em sua versão definitiva reggae, acho que essa é a grande surpresa desse disco.

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