Beatriz Nascimento

Na grande montanha de silenciamento operada em tempo integral pela elite cultural brasileira, há hoje um lugar de honra para a historiadora sergipana Beatriz Nascimento (1942-1995), já que ela foi reconhecida postumamente, em 2021, como doutora honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em vida, Beatriz deixou um curso inconcluso de mestrado, no qual se debruçava sobre a decifração da simbologia libertária dos quilombos afrobrasileiros, da época da escravização até seus dias atuais, de Palmares às favelas contemporâneas. Morreu assassinada pelo companheiro de uma amiga, supostamente porque estaria interferindo em briga (com violência) de marido e mulher. Mesmo contra uma pilha de obstáculos, o pensamento de Beatriz chega flamejante aos anos 2020, pelas mãos da Ubu Editora, que publica o semi-inédito Beatriz Nascimento – O Negro Visto por Ele Mesmo, suficiente, em suas 240 páginas, para explicar uma por uma as origens do silenciamento, dos obstáculos, das implosões. No ideário de Beatriz Nascimento, fermentavam-se ideias talvez óbvias, mas que o pensamento dominante não deixava borbulharem (e mesmo hoje, mediante algum avanço, ainda hesita em libertar).

Beatriz Nascimento (1942-1995)

Organizada por Alex Ratts, a coletânea de ensaios, entrevistas e prosa alinha, pela fala concisa da historiadora, inúmeros pontos de discussão hoje hegemônicos na denúncia e no enfrentamento do racismo, no Brasil e além. O primeiro texto, escrito em 1979 e inédito até a publicação do livro, chama-se “O Racismo na Mídia”, e aborda a impossibilidade de crianças negras da época se identificarem com os personagens negros da adaptação do Sítio do Picapau Amarelo de Monteiro Lobato pela Rede Globo. “O preto que transmitem os meios de comunicação, desde a literatura até a TV, só faz parte de um segmento de classe e, ainda assim é referente a um passado histórico da sociedade brasileira”, conclui, referindo-se à posição subalterna de Tia Nastácia e Tio Barnabé, repulsiva para crianças negras de seu convívio.

Com repercussão limitada à época em que foram formulados, os argumentos de Beatriz foram rebatidos, eventualmente, como indicativos de “patrulha ideológica”, expressão cunhada pelo cineasta Cacá Diegues em parte como reação a uma crítica mordaz tecida por ela a seu filme Xica da Silva (1976). O texto lancinante que desagradou o cineasta se chama “A Senzala Vista da Casa-Grande” e é o segundo da coletânea, ensejando releitura (ou primeira leitura) desconcertante da história recente da cultura pop brasileira. Protagonizada por Zezé Motta e com tema musical interpretado por Jorge Ben Jor, a pretensa reconstrução histórica de Cacá Diegues é desmontada por Beatriz como “um equívoco” que “nos remete à Idade da Pedra”. “O ethos do português colonizador é de humanidade e reconhecimento da pessoa dos negros. Uma escravidão amena e divertida!”, ironiza a historiadora, completamente consciente da perversidade das relações desiguais de classe e racial na sociedade brasileira.

A crítica em compasso de suposta “patrulha ideológica” de Beatriz revela-se no espelho, quando ela manifesta indignação pela forma como filme trata a figura negra feminina, com a qual a historiadora tenta e não consegue se identificar, tal qual a menina que não aceitava se ver em Tia Nastácia: “Xica da Silva não é uma pessoa. (…) O senhor Diegues conseguiu fazê-la menor do que a literatura preconceituosa a fez. (…) Xica da Silva vem reforçar o estereótipo do negro passivo, dócil e incapaz intelectualmente, dependente do branco para pensar”. Dirigindo-se diretamente a Cacá, Beatriz desfere tacada final: “O senhor me faz pensar que sua classe, de acordo com a sua tradição, está dentro da casa-grande jogando restos de comida na senzala. Foi o que os seus antepassados sempre tentaram fazer conosco. Se o senhor não se esqueceu ainda desse passado, ou não o critica para a compreensão da nossa realidade, por favor nos esqueça a nós negros”.

Beatriz Nascimento volta ao tema de Xica da Silva de maneira mais aprofundada, em texto datado de 1981, mas nunca publicado até a edição de O Negro Visto por Ele Mesmo. Aqui, refere-se ao tratamento dado à condição racial da maioria da população brasileira pela indústria cultural como “um novo mercado de negros”. Frontalmente, ela procura enfrentar o contra-ataque de Cacá Diegues: “Fui patrulha ideológica ou defendi o direito de ser um novo negro, um novo homem? Ao não aceitar um estigma instituído pela coletividade nacional, dissemos, sim, que, de uma vez por todas, parassem de nos usar como mercadoria vendável num novo Valongo (…) num grande basta aos racistas e aproveitadores de nossa imagem, logo, de nossa identidade”. Como é amplamente sabido, a mitologia da “patrulha ideológica” se perpetuou pela ótica de Cacá, de zombeteiro da chatice vigiadora de esquerda, e não pela de Beatriz, da mulher negra que tenta se blindar de um ataque misógino e racista.

Dos 11 ensaios reunidos no livro, seis saem agora do ineditismo, o que também é auto-explicativo. Criticam as comemorações oficiais do centenário da morte de Zumbi dos Palmares, em 1988; reivindicam o desenvolvimento da consciência racial; correlacionam etnia (inclusive indígena), gênero e sexualidade; denunciam a escravização não só africana, mas também indígena no Brasil colonizado por europeus; propõem “reflorestar a mente”; e assim por diante.

Nas entrevistas, Beatriz Nascimento celebra a cultura de bailes da black Rio, lamenta a redução da presença negra no carnaval carioca e tateia a continuidade histórica entre quilombo e favela: “Estudando-se a documentação da polícia do século 19, percebe-se que determinadas regiões do Rio de Janeiro, como Catumbi, os morros de São Carlos e Santa Marta e outras favelas atuais, foram, anteriormente, lugares onde existiam quilombos. Ou durante a seca do Nordeste, em 1877, os grupos migrantes que se dirigiam para a Amazônia estabeleceram-se em núcleos formados por ex-quilombolas”. Nesse mergulho ao encontro dos quilobos, ela tentava demonstrar, como diz na mesma entrevista à revista Manchete em 1976, “que negro não é sinônimo de vencido”.

Do setor de textos em prosa, surge o potente “Meu Negro Interno”, escrito em 1974 e publicado apenas nos Estados Unidos, pelo jornal Village Voice, em 1981. Certamente, a reflexão sobre a revolta interna (indefectivelmente interpretada como “agressividade” pelo entorno) que Beatriz elabora ecoa dois anos depois na exposição do branco externo transformado por Cacá Diegues na passivo-agressividade supostamente folgazã de Xica da Silva. Conhecer seu “negro interno”, ela escreve, “é estar só, como era no canavial, como no tronco, como agora”. Essa pensadora não permaneceu em terra firme para assistir aos desdobramentos da descoberta paulatina da “negra interna” de brasileiros e brasileiras, mas, ainda que insuficiente como reparação histórica, o mero advento de O Negro Visto por Ele Mesmo, quase 30 anos depois da morte de sua autora, prova e comprova a justeza do pensamento negro e autônomo de Beatriz Nascimento.

O Negro Visto por Ele Mesmo“, de Beatriz Nascimento. Ubu, 240 pág., R$ 70
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