“Estuário” é o local onde as águas dos rios se encontram com as do mar e as doces se confundem com as salgadas. A palavra intitula o segundo disco do pianista e compositor Tonio de Aguiar, nome artístico do diplomata Antonio de Aguiar Patriota, ex-ministro das Relações Exteriores (2011-2013) do governo Dilma Rousseff e atualmente embaixador do Brasil no Egito.
O título é também uma metáfora para a sonoridade do álbum, sucessor de “Geografia do sentimento”, sua estreia no mercado fonográfico, lançado em 2018. À “Estuário” comparecem jazz, blues, samba e bossa nova, entre temas instrumentais e cantados – Tonio de Aguiar tem como convidados Paula Morelenbaum (em “Portami com te (Luna romana)”) e João Cavalcanti (em “Carnaval do ano que vem”) e o disco tem produção musical e sopros de Leo Gandelman, que, como revela o artista, foi quem o “encorajou a tornar públicas melodias que, de outra forma, teriam permanecido páginas de um diário musical íntimo”.
Além de Gandelman, em cujo estúdio Sax Driver, no Rio de Janeiro natal de Tonio de Aguiar o disco foi gravado, ele é escoltado por André Vasconcellos (contrabaixo), Eduardo Farias (teclado e órgão), Cassius Theperson (bateria), Diogo Gomes (flugel em “The bartender” e trompete na faixa-título). O violoncelo de Janaína Salles dialoga com o piano de Tonio de Aguiar em “Caminho sombreado” e ela integra o quarteto de cordas – com Luísa de Castro (violino), Inah Kurrels Pena (violino) e Clara Santos (viola) – que ouvimos em “O arco” e “Allegoria”. E ao samba de inspiração buarqueana (Chico Buarque e sua “Quando o carnaval chegar” são citados na letra) “Carnaval do ano que vem”, comparecem Marcos Suzano (percussão), André Siqueira (percussão), Rogério Caetano (violão sete cordas), Alessandro Cardozo (cavaquinho) e Luís Barcellos (bandolim). É a única faixa em que não se ouve o piano – nem a voz: João Cavalcanti canta sozinho – de Tonio de Aguiar, compositor solitário das 11 faixas de “Estuário”
Por e-mail, “à margem do rio Nilo, o mais longo do mundo”, Tonio de Aguiar conversou com exclusividade com Farofafá.
ENTREVISTA: TONIO DE AGUIAR
ZEMA RIBEIRO – Há uma frase muito bonita na descrição do conceito de seu disco, “Os ecos de Nova Orleans se misturaram com farofa em um blues sem tristeza”, que eu penso dar conta de seu arco de interesses, referências e da diversidade contida no álbum. Gostaria de ouvi-lo sobre estes aspectos e suas escolhas na realização do álbum.
TONIO DE AGUIAR – Diversidade de influências é um traço tanto do repertório do “Estuário” como do disco precedente. Quando me perguntam “que tipo de música você compõe” tenho certa dificuldade em responder. Leo Gandelman, em tom de brincadeira, sugere que eu responda “música não categorizável”. Tem bossa nova e samba, algumas faixas que poderiam ser descritas como trilha sonora para cinema, blues alegre, baladas de inspiração pop etc.
ZR – “Estuário” foi inteiramente composto no exterior, por força de seu trabalho, e foi gravado em sua terra natal, o Rio de Janeiro. Gostaria de ouvi-lo sobre o processo de gravação do álbum.
TA – Os dois albuns foram gravados sob a atenta orientação de Leo Gandelman, em seu studio de Laranjeiras, com vista para o Pão de Açucar. Ele reuniu um time de músicos talentosos e experientes que formaram, por assim dizer, uma “célula de base”: Dudu Farias, um mestre no teclado e nos arranjos para cordas, André Vasconcellos, igualmente à vontade no baixo acústico e no elétrico, Cassius Theperson, baterista de inúmeros recursos rítmicos. O saxofone do Leo, as vozes de Paula Morelenbaum e João Cavalcanti proporcionaram todo um colorido adicional. Igualmente valiosos foram o quarteto de cordas feminino que além da Janaína Salles, incluiu Clara Santos, Inah Kurrels Pena e Luísa de Castro. O trompete de Diogo Gomes se encaixou como uma luva em duas faixas. Antes de entrar no estúdio, Leo e eu tivemos várias conversas preparatórias por vídeo – ele no Rio e eu no Cairo. Selecionamos o repertório e trocamos ideias sobre a roupagem que cada uma receberia.
ZR – A diplomacia está em seu DNA e a música foi durante muito tempo vista como diletantismo. Seu primeiro disco também é impregnado por referências geográficas, desde o título, “Geografia do sentimento”, e essas referências talvez sejam inevitáveis a alguém a quem viajar é uma missão permanente. Foi Leo Gandelman quem convenceu o senhor de que aquele repertório merecia ser gravado. Podemos afirmar que, não fosse Gandelman, o pianista Tonio de Aguiar continuaria sendo apreciado apenas pela família e uns poucos amigos mais chegados?
TA – Desde criança sou marcado pela itinerância. Não teria como deixar de manifestar minha vivência em diferentes países na música que produzo. A música, na verdade, é uma paixão anterior a minha trajetória na diplomacia, pois data da primeira infância. Foi há uns dez anos apenas, contudo, que comecei a colecionar composições gravadas em meu telefone celular, como quem escreve um diário pessoal. Nem os amigos mais chegados tinham conhecimento dessa produção. Quando acumulei algumas dezenas de composições, decidi me aconselhar com Leo – como quem procura um editor. Leo me encorajou a tornar públicas melodias que, de outra forma, teriam permanecido páginas de um diário musical íntimo.
ZR – Por que a opção de usar um nome artístico diverso do consagrado na diplomacia? É para demarcar bem esses territórios?
TA – A idéia surgiu espontâneamente. Não cheguei a inventar um nome novo, pois decidi usar o apelido pelo qual sou conhecido desde garoto, Tonio, e manter meu sobrenome do meio, de Aguiar. Tonio de Aguiar designa um aspecto específico de um único indivíduo – Antonio de Aguiar Patriota. Será possível demarcar territórios nesse terreno?
ZR – Você canta e toca piano no álbum, gravado em várias línguas, e conta com a direção artística e produção musical de Leo Gandelman, além das participações especiais de Paula Morelenbaum e João Cavalcanti, cada um em uma faixa, e dos instrumentistas. Vamos falar um pouco desta constelação.
TA – Um de meus colegas na diplomacia observou que, apesar da diversidade de estilos e línguas, ele percebia uma unidade no disco. Gostaria de pensar que essa “constelação”, à qual você se refere, se harmoniza em torno de um mesmo projeto musical que nos aproximou.
ZR – Em “Diplomata”, faixa de “Desengaiola”, disco coletivo de Alfredo Del-Penho, Moyséis Marques, Pedro Miranda e seu convidado João Cavalcanti, a letra passeia por diversas geografias e pergunta: “diga, por favor/ se todo embaixador/ se apresenta de terno e gravata”. E adiante, homenageia Vinícius de Moraes: “o poetinha é o maior diplomata”. Em que medida Vinícius de Moraes, seu par em ambos os ofícios, é fonte de inspiração?
TA – Vinicius de Moraes é um ícone. Tenho uma ou outra recordação pessoal dele, pois estudei no mesmo colégio que duas de suas filhas – o saudoso Colégio São Fernando, da rua Marquês de Olinda em Botafogo, que não mais existe. Georgiana era minha colega de turma, e batíamos papos sobre música, quando tínhamos onze, doze anos. Depois meu pai, também diplomata, foi removido para Nova York e perdi o contato com ela. Vinicius aparecia no colégio de vez em quando para buscar as filhas. Eu o observava com certo fascínio, pois já admirava sua obra. Quando ouço “Eu sei que vou te amar”, não consigo deixar de me emocionar. Um de meus discos preferidos de MPB é Maria Bethânia canta Vinicius [o álbum “Que falta você me faz”, de 2005].
ZR – “O arco”, peça para piano e quarteto de cordas que abre o disco, é uma homenagem ao Arco de Janus, obra do século II que homenageia o deus romano que olha para o passado e para o futuro, o que pode ser considerado uma metáfora do diplomata. Em que medida o diplomata e o músico que te habitam se ajudam e se atrapalham?
TA – No meu caso esta pergunta pode soar um pouco prematura: sou diplomata há quatro décadas e um compositor que grava suas músicas no piano há apenas quatro anos. Até o momento não surgiu qualquer incompatibilidade. Pelo contrário, me parece que dar asas à imaginação e à criatividade traz benefícios para a vida profissional e pessoal.
ZR – O próprio título do disco, “Estuário”, tem um pouco a ver com isso? O encontro das águas doces com as águas salgadas na foz do rio, no desembocar no mar, é também uma metáfora para este equilíbrio seu entre a diplomacia de dia e a música à noite?
TA – Esta é uma interpretação possível, mas diferente daquela que me fez escolher o título “Estuário”. Vivo há três anos à margem do rio Nilo, o mais longo do mundo. O Cairo está a poucos quilômetros do mar Mediterrâneo. Me ocorreu a ideia de que as águas fluviais – até mesmo as do rio mais longo – acabam por desaguar em algum mar. E todos os mares estão interconectados. Com o processo criativo sucede algo parecido: nossas impressões e experiências individuais se comunicam com um mundo maior, quando deixam de ser apenas nossas e são compartilhadas.
ZR – Vivemos um período muito complicado que é a infelizmente ainda não terminada pandemia de covid-19, com o consequente isolamento social imposto por ela. Em “Grief stricken” você canta, em inglês, “minha única certeza é a permanência das pirâmides”. Em que medida este disco é uma reação a estes tempos conturbados?
TA – Essa canção, “Grief-stricken” (que pode ser traduzida como “tomado pelo pesar”), tem tudo a ver com o momento mais crítico da pandemia. Foi a única da coleção que já nasceu com letra e título. Eu fui murmurando essas palavras enquanto tocava piano, em casa. “Recolhimento” também reflete esse ambiente de fragilidade humana, diante de uma pandemia que afetou o mundo indiscriminadamente, e o Brasil em particular. Por outro lado, músicas como “Tang Li Na”, dedicada a minha mulher Tania, exprimem sentimentos pessoais, românticos – com uma referência a “Something” dos Beatles, na virada inicial de bateria e no ritmo.
ZR – Por falar em tempos conturbados, o Brasil atravessou não apenas uma crise sanitária, mas também uma crise política sem precedentes. Qual a sua avaliação do governo de Jair Bolsonaro e quais as expectativas para o terceiro mandato do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva?
TA – A expectativa em relação ao futuro governo é a melhor possível. Tive a honra de receber o presidente eleito, no Egito, em sua primeira (e única) viagem ao exterior antes da posse, durante a COP 27 [a 27ª. Conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, realizada em novembro passado em Sharm El Sheikh, no Egito]. Como ele bem detectou, o mundo tem saudades de um Brasil engajado internacionalmente, comprometido com o desenvolvimento sustentável, o multilateralismo. Enquanto eu circulava pelos corredores e salas da conferência, recebi felicitações de diplomatas de todos os cantos do mundo.
ZR – A diplomacia ocupa enormemente seu tempo. A pergunta que não quer calar é: podemos imaginar uma pequena série de concertos reunindo no palco os músicos que estiveram com você no estúdio para executar ao vivo o repertório do álbum?
TA – Já separei dez composições recentes para gravar um terceiro álbum. Essa será a prioridade para 2023. A partir daí, como se diz em linguagem diplomática, não excluo qualquer hipótese!
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Ouça “Estuário”: