Descontração e alegria de Alfredo Del-Penho, Moyseis Marques, João Cavalcanti e Pedro Miranda. Foto: Sabrina Mesquita
Descontração e alegria de Alfredo Del-Penho, Moyseis Marques, João Cavalcanti e Pedro Miranda. Foto: Sabrina Mesquita

Tudo é orgânico e intenso, verdadeiro, sublime. Alfredo Del-Penho, João Cavalcanti, Moyseis Marques e Pedro Miranda, nomes fundamentais para o samba, particularmente, e a música brasileira em geral, presenças constantes em fichas técnicas de discos uns dos outros, de grupos que integraram – Casuarina, Semente, Cordão do Boitatá etc. – e de outros artistas, reuniram-se em “Desengaiola”, necessário audiovisuálbum – para usar expressão deles mesmos em entrevista a Gisa Franco e este repórter no Balaio Cultural da Rádio Timbira AM – que chega nesta sexta (14), às 11h, às plataformas digitais, inaugurando bem o ano que infelizmente se apresenta como a continuidade de um pesadelo.

Gravado em outubro de 2020, já sob a égide da pandemia de covid-19, na “Alameda Palmares” (título da parceria a oito mãos que abre o trabalho), em Paty do Alferes/RJ, o álbum reúne, em 18 faixas, os talentos individuais do quarteto, numa soma que os extrapola. Não à toa, além das composições autorais – duas assinadas pelos quatro, outras em duos e trios entre eles – recorrem a amigos e ídolos, entre Joyce Moreno (“Puro ouro”) e Os Paralamas do Sucesso (“Alagados”, de Herbert Viana, João Barone e Bi Ribeiro).

Ao repertório comparecem também Eduardo Neves (parceiro de Pedro Miranda e João Cavalcanti em “Pó pará”), Cristóvão Bastos (parceiro de Pedro Miranda em “Vontade de sair”), Teresa Cristina (parceira de Moyseis Marques em “Gatilho”) e Chico César (parceiro de Alfredo Del-Penho em “Fuzuê”, que fecha o disco).

Vários outros são citados em letras – “Diplomata” (João Cavalcanti/ Alfredo Del-Penho) homenageia Vinicius de Moraes e, com “Rosa canção” (Alfredo Del-Penho/ Moyseis Marques), cita outros bambas, de Paulinho da Viola e Martinho da Vila a Anescarzinho do Salgueiro e Jair do Cavaquinho, além de comentar um Brasil que o cinema não mostra e estapear meritocratas com luvas de pelica. “Poeta é outro lance” (Moyseis Marques), de tão comovente, parece (e poderia) ter sido escrita por Aldir Blanc ou Paulo César Pinheiro, o que coloca o compositor e seus pares no mesmo panteão. Noel Rosa é lembrado em “Boas intenções” (Alfredo Del-Penho/ Moyseis Marques).

Não é um disco – ou documentário musical – em que cada compositor defende suas criações: os quatro se apropriam de todo o repertório, em unidade raramente vista na música popular brasileira. Audiovisuálbum, aliás, é um conceito feliz, pois costura com maestria o ambiente de um estúdio literalmente a céu aberto, de ensaio e passagem de som e de um descanso, retiro ou fuga em família: enquanto Pedro Miranda mete literalmente a mão na massa (de pão), Moyseis Marques troça, ao afinar o violão: “a gente passa metade da vida afinando e metade tocando desafinado”.

Logo na primeira cena vimos o céu ainda claro já com a lua despontando e ouvimos a zabumba percutida por João Cavalcanti. Logo achegam-se Pedro Miranda, Alfredo Del-Penho e Moyseis Marques e já sabemos o que podemos esperar. Aqui e acolá, pelos sorrisos e olhares trocados, a gente entende a perfeita comunhão entre eles, imediatamente partilhada também com o espectador – que a partir de vê-los em tela já começa a desejar o fim do pesadelo pandêmico (e do desgoverno que ajuda a patrocinar sua indefinida prorrogação), para vê-los pelos palcos do Brasil: o primeiro show de lançamento de “Desengaiola” está marcado para o próximo dia 21, no Circo Voador, com participação especial de Pedro Luís, que assina a produção do disco com João Cavalcanti – a direção do filme é de Eduardo Hunter Moura (Hunter Filmes).

Desengaiola. Capa. Reprodução
Desengaiola. Capa. Reprodução

O samba predomina, mas é reducionista dizer tratar-se de um disco de samba, embora tudo seja samba ou nele comece, como nos ensinou João Gilberto. Foi a partir do gênero que eles colaboraram com a revitalização do bairro da Lapa no Rio de Janeiro. “Luz do meu terreiro”, primeira parceria dos quatro, também registrada em “Desengaiola”, é uma espécie de radiografia do ofício: “uma ideia, um assovio/ já é luz pro meu terreiro/ tua generosidade é o berço da melodia/ fortalece a amizade/ acontece a parceria”.

Versáteis, eles se bastam, revezando-se em todos os instrumentos que vemos e ouvimos: Alfredo Del-Penho (voz, violão sete cordas, flauta e cavaquinho), João Cavalcanti (voz, tamborim, assovio, tantan, zabumba e ganzá), Moyseis Marques (voz, violão, cavaquinho e berimbau) e Pedro Miranda (voz, tamborim, ganzá, pandeiro, tantan, triângulo, caixa de fósforos e violão).

A faixa-título é metáfora que bem traduz o quarteto e sua obra: quem desengaiola o pássaro desengaiola seu canto e a música – “puro ouro”, para citar verso seu que alude ao presente de Joyce aos quatro bambas – precisa circular. Num Brasil de tanta tragédia e notícia ruim, ao qual parecemos nos acostumar ao tornarmo-nos indiferentes ao sofrimento alheio, pois mergulhados em nossos próprios dramas e problemas, Alfredo Del-Penho, João Cavalcanti, Moyseis Marques e Pedro Miranda nos presenteiam com uma lufada de beleza e afeto, dos quais parecemos cada vez mais distantes. Espero que possamos apreciar com dedicada atenção e fazermo-nos merecedores. “Se for pra morrer que eu morra sorrindo”, como diz a letra de “Meu pecado é sorrir” (Moyseis Marques/ Pedro Miranda).

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Assista “Desengaiola” (estreia nesta sexta, 14, às 11h):

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