‘Valsa dos Cogumelos’ inventaria uma revolução psicodélica

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Em pé: Robertinho do Recife, Nirez e Geraldo Amaral, da banda Os Bambinos; sentados; o Laboratório de Sons Estranhos (Daniel Maia, Eduardo Maia e Aristides Guimarães)

Ave Sangria, Lula Côrtes, Flaviola & o Bando do Sol, Marconi Notaro, Tamarineira Village, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, Robertinho de Recife, Aratanha Azul, Ricardo Uchôa, Zé da Flauta, Laboratório de Sons Estranhos, Nuvem 33 e Tiago Araripe. Pode ser que, dessa lista de nomes de bandas e artistas, você conheça dois ou três. Mas a cena em que esses nomes reinaram no Nordeste brasileiro tem uma importância crucial no desenvolvimento da música jovem brasileira que se ouve hoje. E essa história ganha agora o primeiro livro inteiramente devotado à cena da contracultura pernambucana dos anos 1970, Valsa dos Cogumelos – A psicodelia recifense 1968/1981, empreitada independente do jornalista, pesquisador e colecionador de discos Rogério Medeiros.

Valsa dos Cogumelos é o nome de uma música do disco Satwa, de Lula Côrtes e Laílson, de 1973, produzido numa já baleada (e lendária) fábrica Rosenblit, no Recife, às margens do Capiberibe, o álbum que foi o abre-alas de todo o movimento. A canção termina com uma explosão que, na verdade, não se tratava de um efeito: foi um barulho colhido no estúdio após um esbarrão num dos equipamentos. O livro será lançado no próximo dia 3 de setembro, a partir das 15 horas, durante a feira de vinil Passa Disco (Rua da Hora, 345, bairro do Espinheiro, Recife, Pernambuco).

A história toda começa com um espetáculo que acabou por estimular toda a cena da contracultura do Recife naquele tempo: um happening teatral do grupo Laboratório de Sons Estranhos, ainda em 1969. Os personagens que ajudaram a gestar o inconformismo e a ousadia de uma geração foram Aristides Guimarães e Jomard de Britto, professor de filosofia, que promoveram um levante contra “o marasmo cultural da província”. Essa confrontação não foi sem atrito: um então inconformado Ariano Suassuna socou publicamente Celso Marconi, crítico do Jornal do Commercio, por divergências entre o acolhimento do tropicalismo e a defesa da cultura tradicional. Essa oposição tem lances curiosos mais adiante, como o filho de Câmara Cascudo mandando parar um show após ouvir as palavras de ordem “Chega de folclore!”.

Surgiu então o segundo manifesto daquele grupo de agitadores culturais, batizado como “Inventário do nosso feudalismo cultural”, publicado no mesmo mês em que era lançado o disco Tropicália ou Panis et Circensis, aríete do tropicalismo. Nessa época, começaram a proliferar os grupos com guitarras elétricas no Recife, alguns com mais destaque, como Os Moderatos e Os Bambinos. “Os dois grupos tiveram entre seus membros um garoto franzino que impressionava a todos por sua habilidade na guitarra; na época, ele era chamado apenas de Robertinho, mas se tornaria famoso nacionalmente anos depois como Robertinho do Recife“, escreve o autor.

Em março de 1971, num espetáculo de Eduardo Maia chamado de Arame Farpado no Continente Perdido, surgiria uma das primeiras estrelas autóctones daquela geração, o poeta, cantor e compositor Flávio Tadeu Rangel Lira, o Flaviola, predestinado a mudar os rumos da música de invenção do Recife, com apenas 18 anos. O livro, inclusive, registra no final o testamento musical de Flaviola, Ex-Tudo (selo Discobertas, 2020), lançado pouco antes da morte do artista, assim como o comeback da banda Ave Sangria, Vendavais, de 2019.

Para não dar spoilers demais para quem certamente vai ler o livro, saliento que, posteriormente, começaram a sair discos vitais das bandas que brotaram dali, alguns ainda muito pouco reconhecidos, como o Satwa já mencionado, o mítico Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho (o vinil original mais raro do Brasil, à frente de Louco por Você, de Roberto Carlos, de 1961), Marconi Notaro no Sub Reino dos Metazoários, Flaviola e o Bando do Sol e Rosa de Sangue, de Lula Côrtes. Aqueles anos foram batizados, entre alguns amantes da música, como “udigrudi”, mas expoentes das bandas da época não reconhecem o termo como legítimo, preferem psicodelia mesmo.

Rogério Medeiros conta que entrevistou 50 pessoas, entre músicos, compositores e produtores. Além desses depoimentos, pesquisou artigos e resenhas de veículos de comunicação da época. Algumas histórias são inéditas, como as gravações de um dos álbuns mais obscuros da cena, o Indra, de Ricardo Uchôa, e a participação da gravadora Continental na censura ao LP do Ave Sangria. O autor ainda conseguiu localizar e escutar os registros, inéditos para o grande público, de um concerto mitológico daquela época, que aconteceu na igreja do Carmo, em Olinda, em 1974.

O Recife, dessa forma, se tornou responsável por oxigenar a música jovem brasileira pelo menos duas vezes (se deixarmos a invenção do baião de fora, por influente demais): no “udigrudi” dos anos 1970 e no mangue beat dos anos 1990. “Rapaz, não cheguei a pesquisar o manguebeat a fundo, mas eu vejo algumas relações sim, principalmente de atitudes e do que vinha acontecendo na época do surgimento das duas cenas”, ponderou o autor. “Tanto no início dos anos 70 quanto dos 90 havia um certo marasmo na música pernambucana, o que com certeza os participantes das duas cenas também chamariam de caretice. Então tanto a psicodelia quanto o manguebeat foram uma tentativa de renovação, de chacoalhar a cidade”, prossegue. “E, claro, também há aquela figura da parabólica enfiada na lama, de se estar atento aos novos sons mundiais sem perder as referências locais, que acho que existia de uma maneira forte já nos psicodélicos. Eles ouviam rock progressivo, música hippie, ragas indianas e traziam para o universo do baião, do repente, do frevo etc”.

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