“Bispo do Rosário é meu pai porque estou desvencilhado”.

A frase do artista mineiro Pedro Moraleida (1977-1999), desenhada na parte de cima de uma de suas pinturas expostas no segundo subsolo do Itaú Cultural, na Avenida Paulista, parece resumir todo o impulso vital de descondicionamento que, de uma forma ou outra, atravessa as outras quase 600 obras espalhadas em três andares daquela galeria. Moraleida viveu apenas 22 anos.

A pintura de Moraleida é uma das que integram a superlativa exposição Bispo do Rosario – Eu vim: aparição, impregnação e impacto, que exibe 4 centenas dos objetos que o marinheiro sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) produziu (e outras 2 centenas de peças artísticas que são ou influenciadas por ele, ou fazem referência a ele, ou “conversam” com ele) no isolamento em que viveu quase meio século no hospital psiquiátrico Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro.

O que a arte procura reiteradamente em Arthur Bispo do Rosário? Libertar-se. É o objetivo supremo desde sempre. A questão é: Bispo do Rosário era mesmo “livre”? Ou esse também é um conceito elaborado para fazer sentido no interior daquilo que reconhecemos como consciência plena? Bispo, hoje é amplamente sabido, lia jornais e copiava trechos de notícias de revistas, e as listas de nomes que ele bordava em peças de escopo sagrado articulam uma respeitável dose de informação externa. Ele comentou conflitos fronteiriços pelo mundo todo, falou de política, gravou nomes de artistas em seus escritos, organizou um concurso de miss mundial, consagrou musas, médicas e amigas (Sylvia Kristel, Sylvia Gardenberg, Sylvia Demetresco, Silvia Amorosino, entre outras, aparecem nos bordados).

E o que espoucava do mundo exterior dentro da imaginação pancontinental e autônoma de Bispo do Rosário? Na exposição, há até uma peça que carrega em si o germe da controvérsia: uma roda de bicicleta invertida fixada em um estrado de madeira e coberta com uma capa preta. Ora, todos sabemos que há um antecedente histórico dessa peça, a Bicycle Wheel, de Marcel Duchamp, de 1913. Haveria correspondência entre as duas ideias, a do “excêntrico” e a do “louco”? Algum dos dezenas de estudiosos da arte e scholars que visitaram o Bispo no manicômico teria lhe mostrado, na escuridão do isolamento, a ousadia de Duchamp? Na capa preta da sua versão da Roda de Bicicleta, Bispo do Rosário escreveu um texto que inicia com “Estórias de pescador” e termina com “não estudou, fez viagens com um acadêmico”. Parece um fecho de refinado sarcasmo em cima do Duchamp, mas isso é apenas uma inferência de pura diversão do redator.

O fato é que Bispo do Rosário não era Kaspar Hauser. Não tinha sido acordado subitamente para o mundo um dia, saindo de um porão, e a exposição é diligente em mostrar essa diferença. Entre as fotos da mostra, há uma série de retratos do Bispo realizados pelo fotógrafo Jean Manzon e publicados em um ensaio da revista Cruzeiro em 1942, sua primeira revelação pública. Nessas fotos, o Bispo caminha pela Colônia Juliano Moreira, onde viveu como paciente por quase 50 anos, com um dos seus mantos (não o famoso “manto raisonné”, mas um outro mais acinzentado, que sugere ser de uso mais cotidiano) e parece explicar ao seu interlocutor a lógica de suas obras, apontando para o céu, fazendo gestos de quem se dedica a fazer enunciados.

Uma vez, uma artista amiga propôs a Bispo do Rosário trocarem entre si peças de sua arte, um artefato dela por um dele. Ele recusou terminantemente. Para o Bispo, tirar uma das suas peças dali da instituição significava desarticular um universo inteiro, ele não compreendia sua obra como uma reunião de muitas coisas independentes, mas como uma coisa una, um universo íntegro.

O curador da mostra do Itaú Cultural (e também curador do Museu Arthur Bispo do Rosário – Arte Contemporânea, o mBRAC), Ricardo Resende (curador ao lado de Diana Kolker), explicou que, apesar do autor não dar títulos nem datar suas obras, a organização das peças de Rosário sugere um esforço de “catalogação das coisas do mundo”. Numa peça, está escrito assim: “B. 285. Garrafa de oxigênio”. B é a única concessão a uma assinatura, B de Bispo. 285 é o número da peça na organização do autor. A forma de apresentação de suas peças, quase sempre seriadas, com repetição de objetos de uso cotidiano, guarda similaridade com a lógica do camelô, acentua Resende, o ofertório simples e popular da “vitrine”.

Logo na entrada da exposição, nos deparamos com o célebre manto bordado do Bispo (até essa expressão, dita assim, parece guardar algum tipo de autoridade). O manto é uma peça central, constitui em si o chamado “catalogue raisonné” do artista, o inventário possível de toda sua trajetória e de mais de mil obras produzidas. A peça de vestir está inteiramente bordada com motivos que retratam as peças independentes de Bispo. A parte interna é toda bordada com nomes de mulheres, que ele reverenciava.

Por muito tempo, acostumamo-nos a pensar nas janelas do inconsciente como uma estrada de mão única: seriam alimentadas das coisas “válidas” da consciência, sua origem primeva, mas não recolocariam seus minerais brutos preciosos em circulação. A assunção de Arthur Bispo do Rosário  foi uma inflexão decisiva para mudar isso, e seu reconhecimento como um dos artistas fundamentais de uma arte autônoma do inconsciente iniciou a apreciação massiva dessa produção. A partir dos anos 1990, após uma mostra de seus artefatos na 46ª Bienal de Veneza, as últimas resistências em relação ao poder expressivo dessa arte escorreram por terra. Bispo do Rosário caiu nas graças da grande multidão, e até estrelas pop o descobriram – ele está, por exemplo, na capa do álbum Severino, o mais anticomercial disco dos Paralamas do Sucesso, de 1994, no qual Herbert Vianna canta: “Pensa na fome/Eu penso na língua/Em libertar meu pensamento burguês”.

Mas a magnífica exposição que o Itaú Cultural abriu essa semana vai nos levar ainda mais longe do que a mera reiteração da importância de Bispo do Rosário. É uma tentativa de provar que a arte deliberada (ou a chamada consciência) bebeu mais do que suspeitávamos da arte do inconsciente, ou seja: boa parte da vanguarda dos séculos 20 (e também do 21) buscou inspiração naqueles artistas que nem sequer consideram a si mesmos artistas.

Essa mostra reapresenta uma tese escancarada pelo crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981), de que, a partir das décadas de 1920, 1930, 1940 e 1980, os artistas de maior relevo no Brasil passaram a peregrinar pelos manicômios nacionais garimpando expressões artísticas que pudessem carregar aquilo que Pedrosa chamou de “necessidade vital”. O ponto histórico reconhecido dessa nova visão foi uma exposição realizada em 1947 no Palácio Gustavo Capanema, no Rio, com organização de Almir Mavignier, que promoveu o encontro de artistas consagrados como Abraham Palatnik, Ivan Serpa, Geraldo de Barros e Djanira com os artistas-pacientes do Centro Psiquiátrico D.Pedro II – Arthur Amora, Emygdio de Barros, Fernando Diniz, Adelina Gomes, Isaac Liberato e outros. Essa exposição pioneira (e seus artistas) fundamenta um dos três andares da exposição do Itaú Cultural.

Mas, mesmo antes disso, os modernistas brasileiros também já tinham feito incursões pelo mundo da “arte psiquiátrica”, um território no qual alguns limites estritos da arte realizada em plena consciência não existem (mercado, espectador, premeditação, vaidade, competição, objetivo). Ricardo Resende acredita mesmo que muitos dos discursos do tipo “fui para Paris para aprender com as vanguardas europeias”, na verdade, escondem um “fui para o manicômio, para tentar descobrir que tipo de expressão é essa que está liberta de todos os cânones”.

“Cada louco é guiado por um cadáver. O louco só fica bom quando se livra dele”, disse certa vez o próprio Bispo do Rosário. À sua maneira, definia todo o objetivo do ato criativo: o cadáver seriam os condicionamentos inevitáveis a cercear o artista, parte do processo de construção social. Como livrar-se disso é que seria a resposta que tantos buscaram (e certamente alguns encontraram).

Leonilson, Carmela Gross, Rosana Paulino, Jaime Laureano. Regina Silveira, Maria Leontina, Maria Eugênia Franco, Flávio de Carvalho, Abraham Palatnik. Geraldo de Barros e Ivan Serpa. Paulo Nazareth, Maria Aparecida Dias, Rosana Palazyan, Rick Rodrigues, Sônia Gomes e Pedro Moraleida. Carmela Gross e Maxwell Alexandre.

Acompanhar os vasos comunicantes entre Bispo do Rosário e essas falanges artísticas de todos os quadrantes, com as obras de diálogo possíveis de serem vistas ali, em três andares, é uma experiência fascinante. Recentemente, o Museu Bispo do Rosário fez uma nova descoberta: entre as antigas celas da Colônia Juliano Moreira, acharam aquela na qual o Bispo viveu após uma espécie de acidente arqueológico, raspando uma parede. Acharam ali as frases e as inscrições que o artista produzia durante sua saga de iluminação artística. Talvez essa grande aventura que o Bispo nos proporciona todo dia, a de tentar explicar o big bang de sua força, ainda receba novos lances nos próximos dias.

A pandemia, o isolamento social: tudo isso torna essa exposição de Bispo do Rosário ainda mais prodigiosa e necessária. Seus estandartes, seus bordados, seus congas, suas colheres, sua obsessiva organização dos refugos cotidianos têm a capacidade de emocionar, desvencilhar, indagar, reviver, desobstruir, reacender. Como escreveu Frederico de Moraes, tudo que ele deixou representa um dos mais impressionantes e pungentes testemunhos da “importância do ato criador como veículo de afirmação da dignidade humana”.

SERVIÇO:

Bispo do Rosario – Eu vim: aparição, impregnação e impacto. Aberta até 2 de outubro de 2022.   Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149 – próximo à estação de metrô Brigadeiro, pisos 1º, 1ºS e 2ºS ). Ingressos gratuitos. Informações: (11) 2168-1777

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