É um mundo hostil para as pessoas negras. Lojas alertam para sua presença em suas dependências, e podem ser repentinamente barrados em locais de uso público. O sistema de Justiça usa dois pesos e duas medidas para condená-los e isentar brancos. Muitos cidadãos negros são perseguidos por cidadãos e policiais racistas e executados friamente durante seu trajeto para casa, com a família. Religiosos extremistas usam a suposta palavra de Deus para fundamentar a supremacia. E há negros colaboracionistas em instituições de presumível resistência.
Esse mundo de incrível familiaridade com o Brasil de 2021 é na verdade os Estados Unidos da década de 1930, como descrito pela assombrosa graphic novel Incognegro, de Mat Johnson e Warren Pleece. Para além de um manifesto antirracista e de sua dolorosa atualidade, a obra escrita por Mat Johnson (que tem um pouco de autobiográfica), publicada pela Dark Horse Books em 2008, chega agora ao Brasil com um componente extra para fãs de quadrinhos e jornalismo: trata-se de uma inusitada história sobre o exercício do jornalismo para além dos princípios consagrados pelo liberalismo. Ou seja: quais os limites da objetividade e da imparcialidade quando se está em jogo a própria pele?
A história é a seguinte: um repórter afro-americano de Nova York, Zane Pinchback, se passa por um homem branco para poder acompanhar as movimentações do racismo no Sul dos Estados Unidos. Como é mestiço (“Minha camuflagem vem dos meus genes, resultado de uma tradição sulista sobre a qual ninguém gosta de falar. Escravidão. Estupro. Hipocrisia”) e usa um produto para alisar os cabelos (o famoso gel de C.J. Walker para afro-americanos que a tornou milionária), passa despercebido a maior parte do tempo no meio dos brancos. “Assimilação como revolução”, ele pensa.
Concebido como um thriller de ação, à revelia de seu contexto de militância, Incognegro usa esse trunfo de ser entretenimento para esfregar um passado não muito distante na cara do leitor do século 21. O autor trabalha uma vertiginosa pesquisa de fundamentação histórica para criar as cenas, apoiado pelo desenho em preto e branco de grande dramaticidade (que lembra a arte de Kara Walker) – o início é como se fosse uma ilustração para “Strange Fruit”, o grande sucesso de Billie Holiday.
Frio, capaz de se juntar a militantes da Ku Klux Klan no improviso, só para livrar um amigo em apuros, Zane vai descobrir que não se sai impune de um mergulho desses nas profundezas do Mal. Elogiado pelo New York Times, pelo The Times, pelo escritor best-seller Paul Theroux e pelo brasileiro Marcelo D’Salete, o gibi é uma das grandes publicações de uma temporada pródiga em lançamentos de HQs.