Eucanaã Ferraz, curador da megaexposição Constelação Clarice, que se abrirá neste sábado, 23, no Instituto Moreira Salles (IMS), na Avenida Paulista, considera que as pinturas da escritora Clarice Lispector que compõem a mostra (18 telas, das 22 que ela pintou) expressam uma vontade de Clarice de “organizar o caos em linguagem”. A exposição tem dois curadores, ambos escritores: a romancista e crítica de arte gaúcha Veronica Stigger e Eucanaã Ferraz, poeta carioca.

Foram dois anos de pesquisas no acervo de Clarice Lispector para cristalizar a exposição que se abre neste sábado, que organiza cerca de 300 itens em 11 núcleos temáticos. Poucos especialistas se debruçaram até hoje, com profundidade, no recorte da produção pictórica de Clarice, realizada primordialmente entre 1975 e 1977. Mas um dos que foi mais longe, na opinião de Eucanaã, foi o crítico e ensaísta português Carlos Mendes de Sousa, que expôs suas avaliações em um livro publicado em 2000 pela Universidade do Minho, em Portugual: a tese de doutorado Clarice Lispector — Figuras da Escrita (reeditado pelo IMS em 2012).

“Eu tenho a impressão de que (a pintura) é e não é uma faceta (do trabalho da autora). É como se fossem vários ângulos de um cristal. É certo que ela começou mais tarde a pintar, mas é difícil separar a pintura do resto. É como se ela estivesse indo a uma espécie de ponto extremo”, explicou Eucanaã, que vê o trabalho da escritora nas artes visuais como um “desejo, um impulso, uma vontade de chegar a uma tal compreensão das coisas do mundo, dos tempos das gêneses” que extrapolasse aquelas conclusões às quais ela tinha chegado até aquele momento. E o jeito de chegar a esse “lugar informe, que ela uma vez chamou de nebulosa”, foi por meio da pintura.

Eucanaã diz que, em momento nenhum, os curadores tiveram a pretensão de encaixar a pintura de Clarice numa hierarquia artística, definir seu “lugar de artista” visual, mas o intuito básico é “simplesmente deixar que essa pintura seja o que ela é, uma experiência”.

“Não queremos que a presença (das pinturas) soe como um desejo de revisão. Não porque a pintura dela não seja boa o suficiente, mas ela não está conversando com a história da arte, quer simplesmente fazer alguma coisa para si mesma”, considerou.

Clarice, autora de “uma obra tão pouco intelectual, mas que interessa tanto aos intelectuais”, manifestava uma “uma vontade de ir ainda mais fundo” em seus trabalhos visuais. “Ela estava tão interessada na materialidade das coisas, no corpo das coisas” que sua pintura resulra extremamente gestual, cheia de ritmos, analisa o poeta, portando “nada que se pareça com algo da sugestão geométrica”.

O período em que Clarice pintou com mais frequência, nos dois anos antes de sua morte, foi também um momento em que ela se correspondia com intensidade com artistas como Maria Bonomi e Fayga Ostrower. A produção pictórica de Clarice será exposta no IMS em diálogo com obras de 20 mulheres artistas visuais que atuaram na mesma época de Clarice (entre as décadas de 1940 e 1970), entre elas algumas que fizeram referência direta à obra da autora. No conjunto, há trabalhos de Maria Martins, Mira Schendel, Fayga Ostrower, Lygia Clark, Letícia Parente, Djanira, Celeida Tostes, Cláudia Andujar, Ana Bella Geiger, Iole de Freitas, Wilma Martins, Maria Bonomi, Amélia Toledo e Regina Silveira, entre outras.

“É uma exposição que tem uma forte presença curatorial, um forte sentido de interpretação”, avisa o curador. Por isso, é dividida em núcleos temáticos que funcionam como forças atrativas das obras visuais. “Não queremos expor a Mira Schendel, por exemplo, mas sim mostrar as correspondências entre o que Mira fez e o que Clarice fazia. Não que as obras expostas estejam submetidas a Clarice, a serviço de sua obra, mas estão lado a lado. E, nessa justaposição, também ganham uma dimensão escrita, um sentido literário”.

Os títulos das obras de Clarice em exposição marcam uma atitude confrontativa: Eu Te Pergunto POR QUÊ?, Explosão, Luta Sangrenta pela Paz, Caos/Metamorfose/Sem Sentido, Raiva e Reindificação, Cérebro Adormecido, Tentativa de Ser Alegre, Sol da Meia-Noite, Escuridão e Luz: Centro da Vida. Eucanaã considera que não se trata de algo apartado da literatura da autora; antes, trata-se de um continuum, “mas é, ao mesmo tempo, algo muito singular”.

Como musa de pintores, Clarice atuou longamente antes de sua própria aventura pelas telas: posou como modelo para o grego Giorgio de Chirico (1888-1978) e para os brasileiros Alfredo Ceschiatti (1918-1989), Carlos Scliar (1920-2001) e Zina Aita (1900-1967).

A mostra do Instituto Moreira Salles reúne duas telas do próprio acervo da instituição e empréstimos do acervo da Casa de Rui Barbosa. Além das pinturas de Clarice e das artistas mulheres, expõe ainda aproximadamente 300 itens, incluindo manuscritos, fotografias, cartas, discos e matérias de imprensa, entre outros. São 11 núcleos em que são apresentados trabalhos em diversos suportes, como escultura, pintura, desenho, fotografia e vídeo. Como a visitação no ano passado, por causa da pandemia, estava prejudicada, a mostra do IMS é uma boa ocasião para se reverenciar a obra de uma das mais importantes escritoras do mundo, reconhecida em todos os continentes.

Em cada seção, é abordado um tema presente na produção de Clarice, como a questão da origem, a ambiguidade do espaço doméstico, a fragmentação dos corpos, a presença dos animais, a mística, entre outros. Clarice Lispector é a escritora brasileira (nasceu na Ucrânica, mas naturalizou-se) de maior repercussão internacional.

Constelação Clarice. No IMS Paulista (Avenida Paulista, 2.424, tel. 11/2842-9120). De 23 de outubro de 2021 a 27 de fevereiro de 2022. Gratuito. Terça a sexta, 12h às 19h; sábados, domingos e feriados (exceto segundas), 10h às 19h; última entrada às 18h.
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