A escritora e pintora Clarice Lispector

“Pintei um quadro que uma amiga me aconselhou a não olhar porque me faria mal”, contou a escritora Clarice Lispector (1920-1977). “Concordei. Porque neste quadro que se chama Medo eu conseguira por para fora de mim, quem sabe se magicamente, todo o medo e pânico de um ser no mundo”.

Datado de 16 de maio de 1975, Medo é uma das 18 pinturas de Clarice Lispector que o Instituto Moreira Salles (IMS) exibe a partir de sábado, 23, em sua sede na Avenida Paulista, na megaexposição Constelação Clarice.

“Medo”, tela de Clarice Lispector

A escritora Clarice Lispector pintou durante apenas dois anos de sua vida, entre 1975 e 1977, quando morreu. De todas as telas em exposição, há apenas um quadro anterior a esse período: Interior de Gruta, que se estima que ela tenha pintado em 1960. Para o biógrafo de Clarice, o norte-americano Benjamim Moser, ela “criou imagens semelhantes às do Teste de Rorschach, que de fato parecem ser lampejos diretos de sua vida subconsciente”. Para o escritor, as pinturas de Clarice dão a impressão de terem sido feitas sem modificação ou elaboração alguma, como brainstorms. “Clarice não podia burilar seus quadros como burilava suas obras literárias, e esse imediatismo dava a eles um impacto primitivo, visceral”.

Segundo Moser, a lida de Clarice com a pintura começou na época em que ela publicou o livro Água Viva, de 1973, no qual a narradora é uma pintora. Ali, na epígrafe, a autora citava Michel Seuphor e sua preconização de “uma pintura totalmente livre da figura – o objeto -, que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito”.

A produção pictórica de Clarice, pouco conhecida (são contados 22 quadros existentes), será exposta no IMS em diálogo com obras de 20 mulheres artistas visuais que atuaram na mesma época de Clarice (entre as décadas de 1940 e 1970), entre elas algumas que fizeram referência direta à obra da autora. No conjunto, há trabalhos de Maria Martins, Mira SchendelFayga Ostrower, Lygia Clark, Letícia Parente, Djanira, Celeida Tostes, Cláudia Andujar, Ana Bella Geiger, Iole de Freitas, Wilma Martins, Maria Bonomi, Amélia Toledo e Regina Silveira, entre outras. No ano passado, por ocasião do centenário de nascimento de Clarice Lispector, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP montou a exposição A Imagem e a Palavra – Encontro com Clarice Lispector, com obras de 33 artistas tratando do universo da escritora.

Uma das frases famosas de Clarice mostra essa ambivalência entre texto e visual: “Que sabe escrevo por não saber pintar?”, ela disse. “Sem ser pintora de forma alguma e sem aprender nenhuma técnica. Pinto tão mal que dá gosto e não mostro meus, entre aspas, quadros a ninguém. É relaxante e ao mesmo tempo excitante mexer com cores e formas sem compromisso com coisa alguma. É a coisa mais pura que faço”. A autodepreciação típica da autora não surtiu efeito, no entanto: cada vez mais seu trabalho nessa seara desperta interesse.

Sua pintura tem sido revisitada de maneiras imprevistas recentemente. Em 2019, por exemplo, um dos seus quadros que tinha sido presenteado ao escritor mineiro Autran Dourado (1926-2012) foi a leilão. O lance inicial era de 8 mil reais e acabou arrematado por 220 mil reais. No verso da tela, ao lado da assinatura, havia uma dedicatória: “Você já conheceu, como eu, o desespero. Mas é um erro. Tudo vai dar certo”.

O fato de Clarice declarar não ter “nenhuma técnica” é rebatido por Benjamim Moser. Ele destacou um trecho do livro Um Sopro de Vida no qual a escritora sugere um método: “Ou pelo menos nunca ouvi falar desse modo de pintar: consiste em pegar uma tela de madeira – pinho-de-riga é a melhor – e prestar atenção às suas nervuras. De súbito, então, vem do subconsciente uma onda de criatividade e a gente se joga nas nervuras acompanhando-as um pouco – mas mantendo a liberdade”.

“Meu ideal”, escreveu Clarice, “seria pintar um quadro de um quadro”. Para Moser, isso significava fazer a representação de uma representação, o símbolo de uma coisa na própria coisa. A pintura representava também um estado de espírito. “Depois de uma vida dedicada à escrita, seu domínio da linguagem era tão completo que agora ela tinha de buscar deliberadamente a aspereza e a novidade”.

Os títulos das obras marcam uma atitude confrontativa: Eu Te Pergunto POR QUÊ?, Explosão, Luta Sangrenta pela Paz, Caos/Metamorfose/Sem Sentido, Raiva e Reindificação, Cérebro Adormecido, Tentativa de Ser Alegre, Sol da Meia-Noite, Escuridão e Luz: Centro da Vida.

Como musa de pintores, Clarice atuou longamente antes de sua própria aventura pelas telas: posou para o grego Giorgio de Chirico (1888-1978) e para os brasileiros Alfredo Ceschiatti (1918-1989), Carlos Scliar (1920-2001) e Zina Aita (1900-1967).

A mostra do Instituto Moreira Salles reúne duas telas do próprio acervo da instituição e empréstimos do acervo da Casa de Rui Barbosa. Além das pinturas de Clarice e das artistas mulheres, expõe ainda aproximadamente 300 itens, incluindo manuscritos, fotografias, cartas, discos e matérias de imprensa, entre outros. São 11 núcleos em que são apresentados trabalhos em diversos suportes, como escultura, pintura, desenho, fotografia e vídeo. Como a visitação no ano passado, por causa da pandemia, estava prejudicada, a mostra do IMS é uma boa ocasião para se reverenciar a obra de uma das mais importantes escritoras do mundo, reconhecida em todos os continentes.

Em cada seção, é abordado um tema presente na produção de Clarice, como a questão da origem, a ambigüidade do espaço doméstico, a fragmentação dos corpos, a presença dos animais, a mística, entre outros. A curadoria é do poeta Eucanaã Ferraz, consultor de literatura do IMS, e da escritora e crítica de arte Veronica Stigger.

Segundo informa o IMS, o acervo de Clarice Lispector está sob a guarda do instituto desde 2004, sendo formado por uma biblioteca com cerca de mil itens, entre livros e periódicos, e um arquivo com documentos, entre os quais manuscritos com versões inacabadas dos romances  A Hora da Estrela Um Sopro de Vida, correspondências, fotos, um caderno de notas, entre outros itens. Também fazem parte do acervo do IMS diversos títulos da autora traduzidos em mais de dez idiomas. Além de promover o evento anual Hora de Clarice, o IMS já homenageou a escritora com o volume duplo (17-18) dos Cadernos de Literatura Brasileira (que está esgotado). Também publicou o livro Clarice Lispector – Figuras de Escrita, de Carlos Mendes de Sousa, e organizou a mostra Clarice, Pintora, exibida em 2009 no IMS Rio. No ano passado, lançou um site bilíngue sobre a escritora, disponível em https://claricelispector.ims.com.br/.

Constelação Clarice. No IMS Paulista (Avenida Paulista, 2424, tel. 11/2842-9120). De 23 de outubro de 2021 a 27 de fevereiro de 2022. Gratuito. Terça a sexta, 12h às 19h; sábados, domingos e feriados (exceto segundas), 10h às 19h; última entrada às 18h.

 

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome