A literatura-vida de João Carlos Raposo Moreira

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O jornalista e escritor João Carlos Raposo Moreira - foto: Márcio Vasconcelos/ divulgação
O jornalista e escritor João Carlos Raposo Moreira - foto: Márcio Vasconcelos/ divulgação
"Johnny Bigude – Fica Bem" - capa/ reprodução
“Johnny Bigude – Fica Bem” – capa/ reprodução

É difícil eleger a principal qualidade de Johnny Bigude – Fica Bem (ed. do autor, 2024, 200 p.), o relato autobiográfico, seu livro de estreia, de João Carlos Raposo Moreira, em que conta o antes, o durante e o depois de sua dependência de álcool e cocaína.

Comecemos falando da honestidade do texto: o autor re/conhece o seu lugar de doente mas equilibra-se entre não fazer apologia nem colocar-se num lugar de coitado. As decisões de parar com o consumo – que a medicina chama de dependência cruzada – e de escrever sobre isso, foram, cada qual a seu tempo, escolhas conscientes, e ele o faz sem glamourizar qualquer dos gestos.

Jornalista, bem nascido, João Carlos, o Johnny Bigude do título – uma provável tentativa de aportuguesamento do personagem da canção de Chuck Berry (1926-2017) –, reconhece a importância de amigos e familiares em seu processo de recuperação e tem a ideia, com o livro, de “ser uma luz, para quem enfrenta essa batalha e também para seus familiares e amores”, como escreve na orelha, o que faz também sem soar autoajuda, coach ou um vendedor de fórmulas mágicas.

João Carlos reconhece a própria arrogância juvenil enquanto tece um relato ousado, corajoso, necessário, sem pender para os vieses moralista, autoritário ou qualquer suposição de algum nível de superioridade sua. Há mais de 20 anos limpo, ele re/aprendeu a divertir-se sem o uso de aditivos, mas tem consciência de que a recaída é uma fera selvagem, sempre à espreita.

Dos vestibulares para Administração (curso logo abandonado) e Comunicação Social, ao ingresso na Akademia dos Párias – grupo de estudantes universitários (e) poetas que revolucionou a relação da cidade com a poesia e vice-versa –, em cujas revistas Uns & Outros publicou poemas, passando por relações familiares, entre a total compreensão e a turbulência, e percorrer a Rota 66 ainda na adolescência, antes mesmo de travar contato com a literatura beat, o autor nos oferece um relato que ao mesmo tempo leva o leitor a um mergulho na vida “nada importa além do agora” e a uma reflexão sobre o sentido da própria existência, vertiginosa e, por isso mesmo, passível de abreviatura. Estamos diante de um João Carlos em estado puro, que desnuda-se e compartilha sua intimidade, sem tirar nem por, sem aliviar a própria barra, com seus erros e acertos, qualidades e defeitos, vícios e virtudes. Simplesmente humano.

João Carlos faz uma literatura indissociável da vida (Roberto Piva [1937-2010] dizia não haver poesia experimental sem vida experimental): ele viveu tudo o que conta e sabe que estar vivo foi também um golpe de sorte. Eram os anos 1980 e 90 e, além da dependência cruzada, o vírus HIV/Aids, à época ainda uma incógnita, também espreitou o homossexual João Carlos. Quem ler sobretudo a cena marcante relatada em “Drogas, sangue e flores” compreenderá.

Johnny Bigude – Fica Bem tem prefácio de Andréa Oliveira, ensaio fotográfico de Márcio Vasconcelos (cujas fotos se juntam a retratos da época “vida louca vida” de João Carlos, ajudando a contar a história) e capa, ilustrações e projeto gráfico de Claudio Lima.

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Leia dois trechos (da quarta capa):

“Passei a ficar decepcionado comigo, frustrado comigo. Sabia que eu era uma pessoa que tinha uma energia, que tinha uma luz, mas comecei a me sentir opaco. Algo que não transpassa. Me percebia borrado, distorcido. E isso foi me dando uma angústia muito grande. A raiva maior era: eu não consigo cumprir com as minhas próprias promessas, com o que prometo para mim mesmo. De não cheirar por um dia! E se eu cheirasse, eu beberia. Ou vice-versa.”

“Eu gostei da nova vida que eu fui inventando pra mim. Eu gostei de ter responsabilidades. Cada responsabilidade que eu assumia puxava outra e isso não era ruim. É uma sensação incrível, depois de muitos anos, planejar coisas simples e cumprir. Dizer: “amanhã eu vou à praia” e ir à praia. Antes, a cocaína e o álcool atravessavam e nada era mais importante do que eles. Perderam essa importância. E eu fui gostando disso.”

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