Zema Ribeiro entrevista a múltipla Karina Buhr, que fala da carreira e do golpe que tirou uma mulher da presidência do Brasil

Karina Buhr é dona de uma das mais coerentes trajetórias artísticas do Brasil. A artista está acostumada a multiplicidades: é cantora, compositora, atriz, ilustradora e escritora. Com a infância passada entre o Recife natal e Salvador, hoje radicada em São Paulo, é cidadã do mundo. Vida, obra e militância confundem-se, não se sabe onde acaba uma e começa outra, tão impregnadas estão entre si, retroalimentando-se.

Com três discos solo na bagagem, ela já conta mais de 20 anos de artes, embora setores mais preguiçosos da grande mídia tenham saudado seu “aparecimento” como “novidade”, quando ela lançou o disco solo de estreia, Eu menti pra você, em 2010. Em 2015, com Selvática, o mais recente, Karina teve a capa, em que aparece com os seios à mostra, censurada por uma rede social. Se a vida te der limões, faça uma limonada: o tiro saiu pela culatra, o disco e diversos temas caros à artista acabaram ganhando ainda mais visibilidade.

Naquele ano, ela esteve em São Luís, no Maranhão, em duas ocasiões: autora de Desperdiçando rima [Fábrica 231/Rocco, 2015], participou da Feira do Livro; pouco depois voltou para apresentar Selvática durante a Aldeia Sesc Guajajara de Artes. No sábado 22, ela voltou à ilha para um show no Festival Elas, evento idealizado e realizado majoritariamente por mulheres que desde quinta-feira (20), ocupa o sempre simbólico Convento das Mercês (Desterro). Sua apresentação acontece no pátio interno, às 23h30.

De acordo com seu slogan, o Festival Elas “promove cultura e poder feminino”. Mais que apropriada a presença de Karina Buhr. Por e-mail, ela conversou com exclusividade com Homem de vícios antigos.

O Medo de Voar

Cantora, compositora, atriz, ilustradora, escritora. Ser artista multimídia é um imperativo destes tempos? É possível separar as várias Karinas? Em que faceta você se sente mais realizada?

Pra mim isso não é “desses tempos” nem uma necessidade no sentido de “tenho que fazer mais coisas pras coisas rolarem mais”. Sempre fiz essas coisas todas e a cada hora uma se destaca mais, embora a música tenha acabado ficando de frente mesmo. Não tem como separar uma coisa da outra e não vejo muito como realização, no sentido de me sentir bem com o êxito de uma ou de outra. Não são várias, é tudo eu, na saúde e na doença [risos].

Pernambucana nascida na Bahia e radicada em São Paulo. O cosmopolitismo parece ser outra necessidade, hoje em dia. O quanto ajuda e atrapalha ser mais pássaro que árvore?
Isso é uma realidade da minha vida desde sempre, não sei como é ser de outro jeito. Meu pai nasceu na Bahia, minha mãe em Pernambuco e eu sempre pulei de Recife pra Salvador, sentindo as duas como minhas cidades. São Paulo veio pelo Teatro Oficina e acabei adotando como minha também. Não acho que ajude nem atrapalhe, só é assim. E gosto muito assim.

Quando do lançamento de Eu menti pra você [2010] você foi saudada como “revelação”, com parte da crítica ignorando sua participação, para citar apenas o campo musical, em grupos como o Eddie e o Comadre Florzinha. Como você avalia o episódio?
“O que era velho no norte se torna novo no sul” [risos]. Tem a ver com Rio e São Paulo serem considerados O Brasil e o resto ser “regional” e também tem machismo aí. Essa coisa de “novas cantoras”, de não saberem muito bem como tratar mulheres que cantam e compõem, de uma necessidade de colocar todas as cantoras no mesmo balaio – com recorte social também, afinal as cantoras de funk são tratadas como setor à parte, como se os outros setores todos tivessem também relação uns com os outros –, de me tratar como “nova cena”. Não sou nova cena, tenho 43 anos e comecei a tocar (nos maracatus Piaba de Ouro e Estrela Brilhante) em 1994. Enfim, tenho muita história antes de 2010, mas tem esse fetiche ainda de “São Paulo descobriu agora então existe a partir de agora”.

Sua obra e atitudes têm engajamento: letras de música, conteúdo de textos e ilustrações, engajamento presencial e virtual em causas, por exemplo, o feminismo e o movimento Ocupe Estelita, no Recife, para citar apenas dois. Nestes tempos duros, caretas e conservadores, é impossível ser diferente, não?
Pra mim isso também sempre foi uma realidade, de acompanhar de perto essas coisas e de dar opinião e botar mão na massa. Na verdade gostaria de botar bem mais a mão na massa, faço bem menos do que gostaria. Acho que, de um modo geral, somos muito apáticos na ação. Falamos demais e fazemos pouco de fato. Fosse diferente a polícia não tava exterminando pretos e pobres.

Capa-de-Selvática-censurada-pelo-Facebook.-ReproduçãoQuando do lançamento de Selvática [2015], seu disco mais recente, a capa foi censurada por uma rede social. A que você credita a caretice e o ridículo do episódio? Como reagiu?
Ao machismo, de novo. Mulheres estão nuas em todos os lugares, mas sob um olhar machista. Se elas resolvem ficar nuas do jeito que querem aí já é vandalismo. Na verdade essa censura, que é uma grande merda violenta e cafona, acabou alavancando não só a capa do disco como começaram discussões maravilhosas em torno dela e sobre liberdade dos corpos das mulheres e isso foi precioso. Uma coisa ruim gerou uma maravilhosa. Fiquei muito emocionada com esse desfecho e vendo questões que eu colocava nas músicas que ninguém tinha escutado ainda sendo levantadas a partir da capa. O que aconteceu depois é que foi bem ruim. Se você procurar na imprensa o que saiu sobre meu disco vai ler basicamente sobre meus peitos na capa. Dos meus três discos foi o mais fraco de imprensa a respeito do conteúdo mesmo, das letras e tal. Tem sempre o “o disco tem temática feminista”, que é uma frase que não diz absolutamente nada a respeito das composições. No caso, a frase correta seria “é um disco de temática feminista comentado por uma imprensa machista” [risos]. A sorte é que as músicas tocaram as pessoas e o público sacou tudo a fundo e de uma forma linda.

Selvática tem uma pegada mais punk, longe, no entanto, de rotulá-lo e/ou à tua obra. Essa guinada é sinal da urgência dos tempos?
Acho que não. Não sei [risos]. O tempo sempre foi urgente.

Em 2015 você esteve duas vezes em São Luís. Participou da Feira do Livro e pouco depois cantou na Aldeia Sesc Guajajara de Artes. Quais as impressões e lembranças da cidade e do público?
Foi maravilhoso, apesar de corrido. Fico triste de só ir aí correndo, dessa vez vai ser de novo assim. Quero voltar com calma, me devo isso, quero muito, sempre quis, chegar, ficar, respirar São Luís e essa maravilha toda, os tambores, a dança, que me ligam tanto a esse lugar.

Qual a expectativa para o show no Festival Elas?
Espero que seja massa, que vá um monte de gente e quem for fique feliz também e a gente faça junto esse show. É sempre junto, né, o que fazemos no palco reverbera em quem assiste e o que quem assiste sente e faz toca na gente também. Essa é a mágica da brincadeira. E que maravilha ser no Elas, com esse mote de feminismo, de mulheres ocupando todos os espaços, como deve ser.

Como você avalia a importância de um festival desse nível, feito principalmente por mulheres, destacando o protagonismo feminino?
É muito importante! Que a ideia se espalhe sempre! Quanto mais mulheres juntas falando, realizando, se encontrando e trocando mais a gente avança, mas a gente se fortalece.

Do golpe que tirou Dilma Rousseff do poder passando pela escalação do ministério, gestos, atitudes e declarações, o governo do ilegítimo é muito machista. O Brasil retrocedeu bastante. Há luz no fim do túnel?
A luz do túnel são as mulheres todas se organizando e agindo. É sintomático a primeira mulher presidente ser arrancada do poder. Mesmo enquanto ela estava lá isso era muito visível, o machismo todo, acompanhamos tudo, né, os discursos contrários a ela eram sempre com uma carga machista que impedia até de se ter contato com o que queria o problema real. Temos que lembrar também que mesmo com Dilma na presidência o machismo era reinante. Retrocedemos em muitas coisas e uma coisa muito grave foi ela sempre ter se colocado contrária a legalização do aborto, por exemplo. Uma tristeza muito grande vê-la se resignar e tratar o assunto dessa forma. Estamos falando de direitos humanos das mulheres e uma presidente mulher foi totalmente incapaz de tratar isso da forma que merecia e que é urgente. As mulheres seguem morrendo.

* Publicado originalmente no blog De A a Zema

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1 COMENTÁRIO

  1. Gostaria de agradecer ao Homem de Muitos Vícios pela entrevista com a Madame Buhr. Sem dúvida, uma grande artista que tem colaborado para colocar Pernambuco como um dos grandes celeiros de Arte no Brasil. Karina faz parte deste circuito de mulheres empoderadas, capazes de ressignifacar a cultura vista unilateralmente pelo mundo dos homens. Salve Karinas, Tulipas e Céus! A música brasileira também é isso…

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