Como Moraes Moreira construiu a si mesmo

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Instalação da mostra "Mancha de Dendê Não Sai", em curso no Museu de Arte da Bahia até novembro

Está em curso no Museu de Arte da Bahia, em Salvador (Avenida Sete de Setembro, 2340), uma exposição crucial para se entender como um dos artistas mais importantes da música popular do século 20 (entrando suavemente no 21) edificou sua forma de fazer arte. Chama Mancha de Dendê Não Sai, atravessa o percurso de Moraes Moreira em sete seções, começou em agosto e vai até o dia 8 de novembro próximo – portanto, é de curta duração, mas de complexa iluminação.

Como disse o próprio Moraes Moreira em versos, é possível que algumas pessoas o enxerguem como um fabuloso viajandão, um artista de intuições extraordinárias e de imenso jogo de cintura “natural” para capturar os desejos populares. A mostra, ancorada em uma ousada cenografia e uma aprofundada pesquisa no acervo da família (fundamental para sua realização, o que polvilhou de ineditismos seu trajeto), mostra que não foi bem assim: Moraes Moreira, morto muito precocemente há três anos, em 13 de abril de 2020, produzia e pesquisava compulsivamente, como assinala seu filho Davi Moraes, e esmerou-se não apenas na criação de sua persona musical, mas na elaboração da poesia, literatura, composição, na arte de puxador e cantador de trio, na feitura rigorosa (e na leitura) de folhetos de cordel (muitos desconhecidos), no aprofundamento no Carnaval. “Entender sua relação com a música, o futebol, o Carnaval, os parceiros é necessário para entender o território em que seu processo criativo acontecia”, disse a curadora da mostra, Renata Mota.

A mostra sugere uma biografia em movimento que vai ilustrando suas afirmações com música, objetos e revelações cronológicas e visuais. Em uma das salas, assiste-se a uma partida de futebol no famoso sítio dos Novos Baianos, mas a sala toda é concebida como um “terrão”, aquele campo de futebol de chão batido, e a tela de projeção é feita de uma assemblage de camisas de jogadores, enquanto a música vai rolando. O espectador é convidado a, mais do que racionalizar, viver um pouco aquele admirável sonho comunitário, que começou no espetáculo O Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal, no Teatro Vila Velha, em 1969, seguido do álbum É Ferro na Boneca, um ano depois.

Nascido e criado em Ituaçu, no interior da Bahia, mesma cidade onde cresceu Gilberto Gil, Moraes Moreira iniciou sua carreira com o mesmíssimo instrumento que Gil adotou, a sanfona (tomada a uma irmã), sob influência de Luiz Gonzaga. No início, o mundo vinha do rádio e do alto-falante de Ituaçu, depois dos estudos em Caculé, e finalmente, na vida em movimento pelo Brasil. Já em Salvador, o primeiro mestre foi Tom Zé, que o apresentou a Luiz Galvão, o amálgama que produziria uma das revoluções da música do Brasil, no final dos anos 1960. O segundo mestre, já com os Novos Baianos, baixou no encontro no Rio de Janeiro com João Gilberto, que lhes chamou a atenção para a necessidade de aprofundar a brasilidade em seu conceito. Em seguida, o encontro com Antonio Risério, que o iniciou nos afoxés, no ioruba e na cultura dos blocos afro, definindo sua centralidade na obra e no estilo do artista.

Moraes Moreira fez frevos, sambas, afoxés, baiões, serestas, xotes, chorinhos, bossa nova, rap, rock, música erudita, mangue beat, samba reggae. Mas quase tudo que fez envolveu uma teia ultradiversificada de parceiros e vontades artísticas diferentes, às quais ele juntou a sonoridade muito particular do seu violão, o estilo inconfundível fundado no modo de tocar. Ao todo, a mostra permite conhecer 34 canções escolhidas a dedo de Moraes Moreira, com seu leque vital de parceiros: da erudição de Paulo Leminski, coautor de Mancha de Dendê não Sai, à pesquisa rigorosa de Antonio Risério, coautor em Assim Pintou Moçambique, ao formidável encontro com o arquiteto e letrista cearense Fausto Nilo, coautor de diversos hits, como Chão da Praça e Meninas do Brasil, passando pelos megassucessos com os parceiros dos Novos Baianos, como Besta é Tu (com Luiz Galvão e Pepeu Gomes) e Acabou Chorare (com Luiz Galvão).

Os dados cronológicos da história de Moraes Moreira são contados logo no saguão de entrada, com os textos espalhados em plaquinhas de madeira trançadas que formam barranco de beira de rio (uma auto-definição de Moraes), um percurso rigoroso de informações em uma estratégia de quebra-cabeças – os amores, as brigas, o “exílio” no Recife, o retorno à Bahia. Há ainda, encimando o salão, uma instalação de alto-falantes recepcionando o visitante com música. A cenografia é de Renata Mota, a direção-geral é de Fernanda Bezerra. “Caminhamos por seis anos até conseguirmos concretizar esse projeto e mostrá-lo para o mundo”, disse Fernanda Bezerra. A curadoria define Moraes como um artista único, “impregnado das tradições do sertão nordestino, mas atendo ao mundo contemporâneo, à vida na capital e nos centros urbanos”.

Mancha de Dendê Não Sai é uma agradável surpresa no cenário de exposições sobre a obra de músicos, pela capacidade de manter o foco na música, mas fazê-la chegar a públicos diversos, como crianças e neófitos. Não bastasse isso, ainda traz revelações e preciosidades. Uma das seções abriga o violão elétrico Gibson Chet Atkins que Moraes Moreira usou durante 35 anos para fazer seus shows, exposto num púlpito iluminado e cercado por milhares de microfones em riste. “Meu pai sempre foi um só com sua música. Ele e seu violão. Um alto falante, um pedaço de canção, yogue de ouvido, vidente, poeta. Sua carne de carnaval vibrava nos acordes e nas frases que que faziam ressoar o Brasil que ele tanto amou e cantou”, disse Ciça Moraes, filha de Moreira.

E há até um belo presente no final: em uma caixa, no centro da exposição, há cadernos com as letras rabiscadas de Moraes Moreira. Uma delas, a do fabuloso sucesso Pombo Correio, foi descoberta inteiramente rascunhada pelo artista em uma agenda de 1976 pelos seus filhos; a curadoria fez cópias ampliadas da página (de uma terça-feira, 8 de junho de 1976) e as dispõe ali para que o visitante possa levar para casa. “Muita gente vem buscar para enquadrar e colocar na parede”, conta a monitora de visitas. FAROFAFÁ levou logo quatro.

CORDEL DE MORAES MOREIRA

NOVOS BAIANOS

O destino fez seus planos

E os Novos Baianos

Nasceram em Salvador

De um sentimento profundo

Dizendo: vamos pro mundo!

Pregando a paz e o amor

Zombaram alguns caboclos

Que nada esses malucos

Só querem mesmo é curtir

E como quebraram a cara

Pois não sabiam, repara

O que estava por vir

Assim como quem não erra

Partimos da Boa Terra

Pra conquistar o Brasil

E sem medir sacrifício

Sabendo que era difícil

Topamos o desafio

E vejam que maravilha

Aquela nova família

Voando num céu azul

Chegou então decidida

Acreditando na vida

E desembarcando no Sul

Qual era mesmo o cenário?

O regime autoritário

Em clima de repressão

passava a tropa em revista

E exilava o artista

Entristecendo a Nação

Apesar de tudo isso

Cumprindo seu compromisso

Sem medo de ser feliz

A banda com tudo em cima

Levantou a auto estima

Do nosso imenso País

O violão Gibson Chet Atkins de Moraes Moreira
O “telão” de camisas de futebol exibe partida dos Novos Baianos no terrão de Salvador
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