No discurso mais importante do lançamento de AmarElo no Theatro Municipal de São Paulo, em 27 de novembro, em comemoração ao mês da consciência negra, Emicida evoca o líder indígena Ailton Krenak. Influenciado pelo mestre, fala das próprias fragilidades e do equacionamento delas como “homem coletivo”, dono de “trajetória coletiva”. Sua subida ao palco gigantesco do Municipal, diz, não é uma conquista individual, mas antes a conquista coletiva de todos aqueles que ele representa na subida, massacrados ao longo dos mais de cinco séculos desde a constituição da instituição chamada Brasil. O público mestiço presente, que aplaude estrondosamente cada canção, demonstra concordar com o conceito.
Anos atrás, o movimento feminista entrou em confronto com Emicida por conta do samba-rap “Trepadeira” (2013), então considerado machista. Hoje demonstra ter transformado as críticas de então não em raiva e rancor, mas em sabedoria e crescimento. AmarElo (o disco e o show) seria bem menor sem o protagonismo feminino de que desfruta, desde a guitarrista e a percussionista da banda até a maioria das participações especiais e a forte adesão feminina na plateia. A vibrante Drik Barbosa, uma das convidadas, comanda coreografias entusiasmadas na plateia do Municipal, ajudando a compor uma ideia renovadora de circulação palco-plateia. Fernanda Montenegro declama Alphonsus de Guimaraens em off, depois de Emicida vociferar alguns dos versos mais cortantes do CD, de “Ismália” (e Ícaro): “Primeiro cê sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles,
nega o deus deles, ofende, separa eles/ se algum sonho ousar correr, cê para ele/ e manda eles debater com a bala que vara eles, mano/ (…) o menino levou 111/ quem disparou usava farda/ quem te acusou nem lá num tava/ é a desunião dos preto junto à visão sagaz de quem tem tudo, menos cor, onde a cor importa demais”.
A emoção de Emicida cresce a cada convidada(o) que sobe ao palco. As canções amorosas de AmarElo ajudam a criar o efeito e o clima. A plateia canta de cor os versos dos raps-canção recém lançados, sobretudo os de “A Ordem Natural das Coisas”, e mais ainda os dos raps mais antigos. O cantor diz que, assim que soube que cantaria no Municipal, soube que não poderia deixar de “meter” “Gueto” (2013) no repertório: “O zé-povinho só pode falar/ mas o mundo todo pode ver/ onde estiver, onde pisar/ nóiz sempre vai ser gueto”.
A euforia diminui um tom quando ele interpreta a crucial “Paisagem”, outro dos momentos mais ferozes de AmarElo: “Reconheça sério que o mal foi sagaz/ como um bom cemitério, tudo está em paz/ em paz/ em paz/ em paz/ em paz/ tudo está em paz”. Até no Theatro Municipal a aparência é de santa paz, embora o protagonista do palco preconize um tipo muito justo e necessário de guerra, a dos oprimidos contra os opressores.
Emicida vive de modo inteligente a crise de identidade de todo artista periférico que ascende ao sucesso. O que pode e deve fazer um rapper depois que se torna rico e famoso? Como não perder a identidade original que o trouxe a essa condição? Este artista responde com “Cananeia, Iguape e Ilha Comprida”, rap-canção de amor familiar, de grande ternura.
Na versão para o Municipal, suprime o momento mais revelador, a gravação caseira em que dialoga com seu bebê, ensinando-o a tocar chocalho. “Não, chocalho tem que ser tocado com vontade, entendeu? Só que sem risadinha, certo? Sem risadinha, porque aqui é o rap, mano, onde o povo é brabo, entendeu?, o povo é mau, mau, mau!”, afirma, diante de gostosas gargalhadas do bebê. “Pra trabalhar nesse emprego de rapper você tem de ser mau!”, completa, rindo também, contagiado. “Será que o Brown passa por isso?”, pergunta, simulando desconsolo. Há muita coisa dita aqui sobre como lidar com o crescimento (e com a decadência) sem perder a ternura.
Anos atrás, Emicida não se relacionava com desenvoltura com (ou contra) a homofobia pregada ao rap (e a tudo no país). Nesta noite no Municipal, ele convoca a cantora trans baiana Majur e a cantora drag queen maranhense não-caricata Pabllo Vittar para dividirem com ele o libelo antidepressão “AmarElo”. É impagável a expressão emocionada de Emicida ao ver a plateia irromper em aplausos para a trans de tez afrobrasileira e para a drag de tez indígena, enquanto cantamos todas juntas os versos agora funkeados de Belchior, “tenho sangrado demais/ tenho chorado pra cachorro/ ano passado eu morri/ mas esse ano eu não morro”.
Homem coletivo de trajetória coletiva, o rapper ascendente exerce os papéis que ainda lhe cabem da forma mais alta e digna. Sobe ao palco, mas traz com ele mulheres, negros, homossexuais, drags, trans, indígenas, zés-povinhos em geral. O público reage consciente de que está mais próximo dos significados por trás do quase sempre eurocêntrico Theatro Municipal do que jamais esteve.