"João Gilberto", vulgo "Álbum branco" (1973). Capa. Reprodução

“Em 1973, ainda morando em Nova York, João Gilberto [1931-2019] gravou um LP com uma capa super-clean, que entrou para a história como o “Álbum branco” – o nome do cantor em alto-relevo acima de uma foto esmaecida sobre um fundo totalmente branco”, anota o musicólogo e biógrafo Zuza Homem de Mello (1933-2020) em Amoroso: Uma Biografia de João Gilberto (Companhia das Letras, 2021).

E continua: “Pela primeira vez João Gilberto fez um disco como queria, tendo apenas um percussionista e que não era brasileiro. É a prova de que bateristas norte-americanos podiam tocar sem dificuldade a levada do samba”. E mais adiante: “Alguns consideram ser esse o melhor disco de João Gilberto, outros destacam o minimalismo de João”.

Também é Zuza quem traz o depoimento de Sonny Carr (1939-2011), o citado percussionista, ao professor norte-americano Christopher Dunn, pouco antes de o músico falecer: “Um dia João disse: “Vamos gravar”. […] Há um tipo de som muito agudo e “estalado” que consegui usando vassourinhas numa lixeira de vime. E isso eu descobri no quarto do hotel em que João se hospedava. Comecei a tamborilar em tudo o que era objeto do quarto e havia essa estranha lixeirinha que produzia esse som maravilhoso. Foi tudo um feliz acaso”.

O “feliz acaso” se tornaria um dos mais cultuados álbuns da carreira do inventor da Bossa Nova, ainda celebrado, merecidamente, meio século após seu lançamento. O “Álbum branco” volta a ser tocado na íntegra por Cacá Machado (violão) e Laura Lavieri (voz), com quem FAROFAFÁ conversou com exclusividade. A eles soma-se o percussionista Igor Caracas, em duas apresentações: dias 11 (quinta-feira, no Sesc Pompeia, em São Paulo) e 13 (sábado, no Sesc Jundiaí) – a estreia aconteceu 11 de novembro passado, na Casa de Francisca (São Paulo), dentro das comemorações pelos 50 anos que o disco completou em 2023. Nos bastidores o elenco se completa com Alexandre Matias (direção executiva), Guto Ruocco (direção de produção), Amanda Dafoe (direção de arte) e Fernanda Carvalho (luz). Cacá Machado e Laura Lavieri assinam a direção artística e musical.

No palco, Cacá Machado, Laura Lavieri e Igor Caracas percorrem, sem tirar nem por, a íntegra do repertório do “Álbum branco”: “Águas de Março” (Tom Jobim), “Undiú” (João Gilberto), “Na Baixa do Sapateiro” (Ary Barroso), “Avarandado” (Caetano Veloso), “Falsa Baiana” (Geraldo Pereira), “Eu Quero Um Samba” (Janet de Almeida/ Haroldo Barbosa), “Eu Vim da Bahia” (Gilberto Gil), “Valsa (Como São Lindos Os Iogues)” (João Gilberto), “É Preciso Perdoar” (Alcivando Luz/ Carlos Coqueijo) e “Izaura” (Roberto Riberti/ Herivelto Martins), esta em delicado dueto com Miúcha (1937-2018), sua ex-esposa.

Melhor Do Que O Silêncio, o título do show-tributo, é verso de “Pra Ninguém” (1997), de Caetano Veloso, em que o baiano homenageia diversas figuras da música popular brasileira e arremata: “Melhor do que isso só mesmo o silêncio/ E melhor do que o silêncio só João”.

Cacá Machado e Laura Lavieri - foto: Amanda Dafoe/ divulgação
Cacá Machado e Laura Lavieri – foto: Amanda Dafoe/ divulgação

ENTREVISTA: CACÁ MACHADO E LAURA LAVIERI

ZEMA RIBEIRO: Eu quero começar do começo, mesmo sendo redundante: quando é que vocês se conhecem e estabelecem essa relação de trabalho e amizade?
LAURA LAVIERI: Foi uma surpresa, na verdade, porque esse trabalho eu tinha começado com outra parceria e eu conheci o Cacá, de verdade, que ano que foi aquele show do [espaço cultural] Galpão Cru?
CACÁ MACHADO: Nossa, aquilo foi no meio da pandemia, né?
LL: Foi no final, né?
CM: Em 21, 22, não me lembro.
LL: É, foi tipo 2021, alguma coisa assim, que tinha esse espaço, que agora eu acho que nem tem mais show lá, chama Galpão Cru, em São Paulo, na Barra Funda, e eu fiz um show na mesma noite que o Cacá, e eu ainda não conhecia o Cacá, nunca tinha visto ao vivo, nem pessoalmente, nem artisticamente, e fui ver naquele dia e adorei. E até era um dia que ele estava cantando com a mulher dele, que é a Amanda, que é quem está ajudando a gente na direção de arte nesse projeto. Mas é isso, assim, eu conhecia muito en passant, muito de leve. O projeto acabou porque essa pessoa que primeiro estava fazendo comigo não quis mais fazer e aí eu achei que o projeto ia morrer porque tinha essa coisa do cinquentenário, de realmente lançar esse projeto no ano passado, e não é fácil achar quem tenha coragem, tempo, disposição e responsa de assumir um projeto de João Gilberto e eu procurei bastante, muitas pessoas, e eu já estava quase desistindo do projeto inteiro. E aí o Alexandre Matias [jornalista] me apresentou o Cacá. Falou: “não, então, peraí, o Cacá, é óbvio, o Cacá, o Cacá, o Cacá”. Eu falei: “nossa, mas eu conheço muito pouco do Cacá”. E aí foi o Matias que falou: “não, pode confiar, o Cacá é a pessoa”. E aí eu fui assim num voto de confiança total. E foi uma surpresa maravilhosa, porque eu não imaginava nem que eu ia ganhar um grande amigo e nem que eu ia encontrar uma pessoa tão boa para o projeto, e foram as duas coisas, foram duas surpresas muito boas.
CM: É isso, é, exato. Eu também eu não conhecia a Laura, né? A gente não se conhecia, eu conhecia en passant, pela coisa com o [cantor, compositor e sanfoneiro Marcelo] Jeneci, aquele período da Laura com o Jeneci [ela gravou em seus dois primeiros álbuns, Feito Pra Acabar (2010) e De Graça (2013)], eu tinha uma relação com o Jeneci de outros carnavais, mas não era uma coisa que eu ouvia assim, né?, na realidade. E daí tinha esse lugar e o Matias fez esse encontro, teve esse show, que a gente encontrou, eu fiquei encantado com a Laura cantando e tudo mais e daí o Matias veio com essa história, e eu lembro, foi isso, né? A gente foi comer em algum lugar, algum bar, restaurante, uma moqueca, um negócio assim, e daí a gente: olha, primeiro precisa ver, pra dar casamento precisa ver se vai ter namoro primeiro [Laura ri]. Vamos tocar, né? Primeiro, vamos tocar, vamos ver se esse negócio vai dar samba. Mas aí no primeiro dia que a gente se encontrou, casou, e daí juntou tudo, né? A gente descobriu e juntou os nossos prazeres etílicos e gastronômicos [Laura e Cacá riem] com os musicais e juntou tudo. Daí, parece que a gente é amigo há décadas.

ZR: Qual o lugar de João Gilberto nas memórias afetivas e na formação musical de vocês?
LL: Nossa, é todo. Assim, meu pai [Rodrigo Rodrigues (1961-2005)] é o grande responsável, meu grande formador. Era fundamento para ele, o João Gilberto e o Chet Baker [trompetista e cantor norte-americano (1929-1988)]. Acho que é a dupla mais básica ali da formação dele e do que ele me passou. Então meu pai tocava muitos instrumentos, mas ele era essencialmente, assim, um baita cantor. E aí na coisa especialmente do canto tinha essa coisa do João Gilberto e do Chet Baker, que se expande, né? Não é só do canto, mas é de um entendimento de música, de uma coisa minuciosa, de uma coisa minimalista, de uma coisa simples na essência, em cantar só o essencial, então foi minha grande formação, é uma memória afetiva, é uma memória de vida, assim. É bem fundamental na minha vida e especialmente esse disco também.
CM: Pra mim João Gilberto é isso, dessas sonoridades, não vou falar nem de artista, mas digo como sonoridade, como espiritualidade formativa, assim, por eu ser também muito, parece que não, a Laura vai rir aqui, mas eu sou muito, sempre fui muito tímido, muito acanhado e coisa e tal, e o João Gilberto sempre foi o lugar onde eu me encontrei na música, sempre num circuito musical, numa fase mais anterior na vida, mais jovem, no jazz e coisa e tal, indo para essas coisas mais para fora, mas eu me achava no João Gilberto, que era um lugar onde eu entendia aquilo, e me fazia sentido profundo. Ao mesmo tempo que unia com o meu interesse, pelo meu lado de pesquisador, então João Gilberto é uma espécie de revelador da história da música brasileira. Então eu fui descobrindo o samba, eu cheguei no samba via João Gilberto. É curioso isso, né? [Laura ri]. Porque eu ouvi primeiro João Gilberto para depois ouvir Cartola (1908-1980), para depois ouvir Nelson Cavaquinho (1911-1986), para depois… não que ele tenha, ele nunca tocou nenhuma canção do Cartola, mas ele abriu a porta para o rádio dos anos 40, para esse lugar dos anos 30, 40, e que eu não tinha. E depois tinha isso, eu tenho uma história também de casa, a minha mãe tinha uma relação muito forte com música e com o João Gilberto, perdi ela relativamente cedo, e o meu pai o contrário, a gente não tinha toca discos em casa, não tinha nada, não tinha som em casa, e daí o meu pai quando comprou o primeiro toca discos, eu já devia ter uns 12, 13 anos de idade, foi o primeiro equipamento de som que teve em casa, minha mãe ouvia rádio e tudo mais, Rádio Cultura, daí minha mãe comprou o disco Amoroso (1977), do João Gilberto, e daí a gente, eu ficava ouvindo aquilo, achava aquilo estranho, aquele cara falando aquele italiano que ninguém entendia, aquele violãozinho baixinho, aquela vozinha. Eu lembro de uma vez meu pai passar na porta, “tira essa porcaria aí, Cacá, esse cara que não canta nada, canta muito mal, isso é uma porcaria” [risos]. E eu: “tá bom” [Laura ri]. Meu pai gostava de Bezerra da Silva (1927-2005), então era outra história, né? Então tem essas coisas, mas daí para mim sempre foi um lugar muito íntimo meu de encontro musical, numa intimidade. E depois, desculpa, eu estou me alongando aqui, perdão, é que eu lembrei também, depois tem a coisa do violão. O João Gilberto eu fui tirando aquelas harmonias, então aprendi muito harmonia com João Gilberto, depois quando eu fui ter mais informações musicais, coisa e tal, mas eu sempre ia para o João, lá que eu tirava aquilo tudo. Então, quando a Laura chamou para o projeto, de certa forma aquilo me fez voltar para o começo da minha vida musical. Depois eu toquei um período na noite, assim, no Bom Motivo, aqueles bares na Vila Madalena no final dos anos 80, começo dos anos 90, e a gente tocava os standards todos. Então era esse repertório, que passava por [Tom] Jobim (1927-1994), Vinícius [de Moraes (1913-1980)], essa coisa toda. Mas era muito diferente do João Gilberto. João Gilberto era outro lugar. Uma coisa são os standards e outra coisa é a Bossa Nova standardizada, outra coisa é João Gilberto, que daí lá é um lugar essencial fundamental.

ZR: Esse episódio de teu pai mandar tirar essa porcaria é um negócio bem sintetizador do sentimento em relação a João Gilberto, porque é um cara que não tem meio termo: ou você ama ou você odeia. Porque geralmente as pessoas que não gostam dizem: “rapaz, não canta nada”. Eu tenho um amigo que não suporta João Gilberto, ele pode ouvir qualquer coisa, mas quando chega em João Gilberto a gente briga sempre.
CM: [presumindo possíveis comentários] Rapaz, não dá pra ouvir, né? Canta tão baixinho [Laura e Cacá riem].

ZR: A gente briga sempre, porque eu tento convencê-lo do contrário. Eu acho que a Laura na resposta anterior falou que esse álbum branco é o João Gilberto preferido dela. Ou eu entendi errado, Laura? Eu queria saber qual é o João Gilberto preferido de vocês.
LL: Não, sem dúvida é o álbum branco. Eu tenho, para mim, que o álbum branco é uma síntese de tudo que ele foi e fez, do que ele criou. Não que se resuma àquilo. Que é isso, né?, quando você ouve um disco com arranjos orquestrais é outra coisa, traz outras grandiosidades, mas assim, eu acho que é uma síntese, porque ali você tem a intimidade, a pura essência dele, aquele lugar muito próximo mesmo, muito íntimo do quê que é aquela sonoridade, o que ele descobriu na música e o que ele evidenciou na música, assim, que é quase como uma descoberta, porque é isso, as pessoas às vezes nem entendem e acham uma porcaria, mas eu acho que ali é quase um diamante bruto, é uma coisa essencial da música o que tem ali, o que ele desvenda ali.
CM: Eu não tenho essa coisa com o álbum branco, eu tinha, descobri isso talvez mais tardiamente, eu tinha muito com o disco Amoroso, do João Gilberto, mas porque tem esse lugar da memória afetiva, e depois o Amoroso tem o Claus Ogerman [compositor e arranjador alemão (1930-2016)], aquela coisa orquestral, e foi um momento que eu fui me interessar por arranjos, escrever, então abriu assim um lugar para mim que é o João Gilberto orquestral, os arranjos de cordas, as flautas. Daí fui eu ouvir o Canção do Amor Demais [é o primeiro álbum em que João Gilberto toca violão], que é o único disco que minha mãe tinha, eu tenho até hoje, é de 58, lá da Elizeth [Cardoso (1920-1990)], coisa e tal. O álbum branco, eu nunca tive ele. Então foi já de gente grande que eu descobri o álbum branco e daí eu concordo cem por cento com a Laura, daí eu entendi que é o que tem de mais profundo no João Gilberto, o álbum branco. Como experiência sonora e musical não se compara com os outros, mas afetivamente, para mim, é o Amoroso, é onde eu me conecto com o João.

ZR: Maravilha! Sobre o show de vocês: o título vem de um verso de Caetano em homenagem a João. Eu queria ouvi-los sobre o conceito desse show, pensando, inclusive, que a apresentação não deve se restringir ao repertório de um único álbum, não sei se eu estou errado, porque um álbum acaba ali, sei lá, 40 minutos [o “Álbum branco” tem 49’30”], o show deve ser um pouquinho maior, não? [ambos riem]. Surpresa!
LL: Essencialmente é sim, só o álbum branco, e era uma questão para a gente, se a gente conseguiria fazer um show só disso. Só que a gente quis criar, que como a gente entende – eu estou falando a gente porque, enfim, a gente mergulhou tão profundamente, nós dois, eu e o Cacá, no desenvolvimento desse show que eu passei a falar a gente, ele me corrige se ele discordar [risos] – que tem uma coisa imersiva e mântrica no álbum branco também, na repetição, na coisa minimalista, na coisa essencial, na coisa que se reduz àquele jeito de cantar e jeito de tocar e fica realmente só aquele essencial e aquilo é parecido pra gente, a gente acabou vendo isso, uma coisa mântrica e imersiva. Então a gente quis criar transições entre as músicas. Acabou que no começo a gente queria que fosse o show inteiro interligado, não falar nada, não ter pausa nenhuma, mas é isso, assim, acho que já é um desafio grande de pegar pessoas que ainda gostem do João Gilberto, de uma coisa tão calma e imersiva [risos] quanto isso, em 2024, agora, mas acaba ficando mesmo cansativo para um show, então a gente acabou fazendo uma pausa ali no meio, em que tem um contato com a plateia, uma conversa pequenininha, mas a gente fez essas transições e nessas transições ganha-se um tempinho também, né? Então acaba que o show tem uma hora, só que é isso, a gente quis se ater, assim, desde o começo, quando eu quis fazer um show desse disco, eu não tinha nenhuma pretensão de fazer nada novo a respeito disso. Ao mesmo tempo que eu também não tinha nenhuma pretensão de conseguir imitar o João Gilberto [risos], mas de fazer uma reinterpretação e uma apresentação daquilo de uma maneira fiel ao que eu escuto daquilo, né? Então acaba fazendo sentido pra gente se ater só a esse repertório e ter essas transições que são uma forma de a gente por um pouco também da nossa interpretação, desse espectro imersivo, dessa interpretação, desse universo do João Gilberto, desse disco.
CM: Pois é, Zema, o show é o disco [Laura ri]. Até uma piada interna engraçada, mas que eu posso contar, de jeito nenhum é, digamos, depreciativo, nada disso, mas o Matias, o Alexandre Matias, a gente fez uma primeira audição, que ele fez essa ponte entre nós, aí a gente fez uma audição aqui em casa do disco, né? E o Matias fala: “não, esse disco tem 30 minutos, né?, 37 minutos, alguma coisa assim, a gente vai ter que alongar ele para fazer o show, alguma coisa”, e a gente, ninguém foi olhar o disco para ver quantos minutos tinha. Daí a gente colocou aqui para fazer a audição do disco, para fazer essa imersão, eu coloquei aqui, abri ele no Pro Tools [software de áudio], coloquei ele na sequência e a hora que a gente viu ele tinha 50 minutos, eu acho, o disco, ou quase isso, ou seja, era a ideia de fazer um show e a gente estava nessa primeira motivação e tudo isso são processos criativos. A gente se coloca um desafio e a ideia de fazer um espetáculo que fosse quase que uma peça de teatro, que você tivesse som e luz e que você mergulhasse nessa experiência que a gente nunca vai fazer como, a gente não quer fazer um cover de João Gilberto, a gente é incapaz de fazer um cover do João Gilberto, porque os nossos trabalhos são muito autorais. Um parêntese: quando surgiu o convite, o Matias fez essa ponte com a Laura e coisa e tal, eu falei “ah, eu nunca fiz isso na vida, nunca me propus a interpretar ninguém, meu trabalho é profundamente autoral, eu sou completamente errático no meu caminho, do jeito que eu acho que tem que ser. Pra quê fazer tributo a alguém?”. Mas daí era o João Gilberto e daí, já que vamos fazer um tributo para alguém, vamos fazer aquele tributo que é o impossível, porque o João Gilberto é impossível fazer cover dele. Porque ele já foi coverizado ad nauseam, ad infinitum, e no pior sentido da standardização disso. Daí vira um desafio artístico, que é pegar um cara do tamanho do João e a gente se deparar com essa obra e falar o quê que a gente pode fazer com ela, né? Então o primeiro momento foi isso: vamos fazer o disco cravado e vamos fazer isso virar um espetáculo todo fluido. Daí a gente está descobrindo, no processo está virando outras coisas, mas essencialmente é o disco, né? Não tem nenhuma música de outro disco.

ZR: Como é que tem sido para vocês, durante esse processo de pré-produção, produção, ensaios, enfim, porque pelo que eu estou percebendo, e não é difícil concordar com vocês, a gente já sabe que se for pensar na coisa do cover a gente já entra no palco derrotado, porque nunca se vai chegar a João Gilberto. Como é que vocês estão pensando essa questão para não esbarrar na coisa do mero cover, mas também a gente sabe que não dá para reinventar João Gilberto de um modo que fique uma coisa completamente estranha para quem gosta, que vai estar ali querendo ouvir alguma coisa perto de João Gilberto. Como é que vocês estão lidando com isso em termos de arranjo, cenografia, enfim, as concepções todas que envolvem um espetáculo como esse?
LL: Foi o nosso maior desafio, né? E a gente se propôs, a gente gosta de estudar, de ensaiar, de conversar, de aprofundar, então foram muitos encontros assim, eu e o Cacá, e a gente falava muito desse desafio. E aí a gente relaxou em algum momento, a gente falou: “vamos fazer o seguinte, vamos nos ater ao estudo, a aprofundar, vamos ouvir muito esse disco, vamos tocar muito esse disco, vamos entender o quê que ele fez e aí a gente vai ver o quê que aparece”. E eu acho que o que foi legal, e eu falei muito isso para o Cacá, assim, porque a minha grande questão também com reinventar é que, assim, simplesmente reproduzir, reinterpretar, já parece impossível e sim, porque ninguém vai fazer o que ele fez, mas também querer reinventá-lo, também me parece uma audácia absurda, porque ninguém vai fazer nada melhor do que ele fez, a partir do que ele fez. Meu pai era intérprete, não era compositor, eu sou uma grande fã dos intérpretes, o João, em essência, era um grande intérprete, muito mais do que um compositor, apesar de ter muita autoralidade no que ele fazia e de também compor. Eu vim da música clássica, vim do que meu pai me ensinou, mas eu, meu primeiro contato com a música efetivamente foi aos sete anos, tocando o violoncelo, e eu toquei em orquestra, e é uma relação tão diferente, ao mesmo tempo, quando eu comecei a cantar era importantíssima a autoralidade, “mas você compõe?, você canta o que você compõe?, são músicas inéditas?”, e é isso, na música clássica as pessoas estão ali há milênios [risos] tocando coisas antiquíssimas e que todo mundo toca aquela mesma partitura, que está dito até onde que você acentua, onde você puxa o arco, onde você empurra o arco. Para garantir, ainda tem um maestro, que garante que você vai fazer do jeito que ele quer, então eu estava mais nesse lugar, assim, de buscar estudar esse cara e de ter um respeito ali e querer entender o que foi que ele achou, que é tão misterioso, que acho que também tem isso, né? O nosso encanto pelo trabalho do João Gilberto é também porque é meio misterioso, que é isso, é difícil até você falar sobre ele, porque uma coisa que é tão simples, mas que é tão rica e que é tão profunda. E para a gente era difícil na teoria ficar esmiuçando, aí então, o que é que tem de mágico nisso, que a gente vai sintetizar e a gente vai repetir. Não tinha, não tem como, é muito difícil e é meio misterioso e é meio mágico, então o fato da gente ter ido tão profundamente, ter estudado, ter se curvado, de certa forma, a isso, em primeiro plano, assim, acho que fez a gente entrar em contato com o que esse disco é, está querendo dizer. E aí acho que a gente teve um contato profundo com essa essência e a gente não deixou de ser quem a gente é. E foi muito legal, porque o primeiro show que a gente fez, que foi na Francisca, a resposta das pessoas foi muito essa, sem que eu tivesse contado para ninguém que esse era o meu temor, essa era minha aflição, essa era minha busca. As pessoas vinham me dizer isso: “nossa, mas que bacana, porque vocês retratam muito bem o disco, mas é claramente vocês”, então, também é isso [risos], do mesmo jeito que eu não sei explicar muito a magia do João Gilberto eu também não sei explicar muito como é que a gente fez, mas foi nesse caminho, assim, para mim.
CM: É quase o campo do indizível mesmo, né? Porque eu acho que a Laura sintetizou bem. Se a gente não tivesse levado a sério o estudo do João Gilberto, não como talvez o cover, né? Ele leva demais a sério o estudo e ele fica preso no estudo, né? Quando um cara é um cara bom de cover, um cover de Beatles, não sei o quê lá, que ele quer reproduzir igualzinho. A gente fez o trabalho que é como pegar um [o compositor Heitor] Villa-Lobos (1887-1959) aqui, vai lá, tem que estudar, tem que tirar aquilo, tem que entender as dinâmicas, então eu fiz isso, a Laura fez isso com o canto do João Gilberto obsessivamente, eu fiz isso do ponto de vista do violão, das harmonias e coisa e tal. Depois que aquilo é comido por nós, de certa forma, o estudo, depois a gente devolve aquilo do nosso jeito e daí vai, mas é processual também, que se fosse um show para ser montado em 15 dias a gente nunca ia chegar nesse ponto, né, Laura? Eu acho que como teve praticamente uns quatro, cinco meses de obsessão nisso, a gente foi depurando, depurando, depurando, com o risco de sair um grande cover sem graça.
LL: Sim.
CM: Tanto é que, de prova, foi justamente o show da Francisca e lá a gente sentiu isso, que é aquilo que a gente desejava, mas ao mesmo tempo estava morrendo de medo, porque eu acho que todo o projeto artístico sincero tem risco e tem medo e tem angústia, né? E a nossa angústia era isso, mas então para quê tocar João Gilberto? Uma coisa é tocar [o compositor Wolfgang Amadeus] Mozart (1756-1791), tocar Villa-Lobos, que é um repertório erudito, que nós temos uma tradição de interpretação e coisa e tal; a música popular não tem essa tradição. A gente pegou e teve aquele rigor dos músicos eruditos, de ficar tirando e tocando aquilo como João Gilberto, mas aquilo magicamente foi dando num outro lugar e parece que que funcionou, haja vista o que a gente viu na Casa de Francisca e estamos torcendo para que aqui no Pompéia a gente consiga trazer essa mesma magia [Laura ri].

ZR: Vocês têm acompanhado, eu queria saber, se sim, o que que vocês têm achado de outras homenagens recentes a João Gilberto, como por exemplo o disco da filha Bebel [Gilberto; o álbum João (2023)] e o show que reúne Celsim e Arthur Nestrovski. Viram, ouviram, gostaram, acompanharam, não estão sabendo?
CM: O disco da filha, da Bebel, eu ainda não ouvi, estou super curioso. O Arthur e Celsim são meus amigos de longa data, íntimos e tudo mais. Vi o show, é lindo, é um show que o Arthur pegou mais, então é um show que ele, é quase uma aula show, porque ele desenvolveu um discurso crítico sobre o João Gilberto e acabou levando para o palco, o Só João. É lindo e eles não estão num disco do João, eles passam pelo repertório e tudo mais. Eu acho que tem a singularidade dos dois lá, eu acho que é maravilhoso também. O disco da Bebel eu não ouvi, estou curiosíssimo.
LL: Eu não ouvi o disco da Bebel, vi algumas coisas, esse ano, do João, e eu acho todas maravilhosas [risos], porque é isso, eu gosto muito do assunto, então eu gosto de ver pessoas debruçadas sobre suas paixões, ainda mais uma paixão em comum, então achei gostoso de ver e isso também foi um motivo de eu ter tido essa vontade de fazer esse show porque acho pouco [risos], acho que para o tamanho que é o João Gilberto, e é isso que o Cacá falou, assim, ah, não tem essa tradição da música popular, mas é isso, na minha opinião João Gilberto é tipo um Mozart, tipo um [o compositor Johann Sebastian] Bach (1685-1750). Então eu acho um pouco chocante que tenha tão pouco. Na minha opinião era para ter mais e acho que esse ano acabou tendo mais, no ano que passou, né? E quero mais é que tenha muito porque acho que é uma coisa para se manter viva mesmo.

ZR: Acabei esquecendo de incluir na minha pergunta o álbum ao vivo [Relicário, Selo Sesc, 2023] que o Sesc lançou ano passado também.
LL: É incrível! Maravilhoso!
CM: Maravilhoso! De arrepiar. Esse quando veio, assim, eu fiquei em estado…
LL: Sim, demais.
CM: E começa com aquela canção, “Violão Amigo” [de Bide e Marçal], que é lindo, que a gente não conhecia, então é uma canção que a gente não está acostumado a ter do repertório do João e a relação dele com o violão, e ele foi muito bem masterizado, porque ele foi gravado em um show. E eu lembro que o Guto comentou desse disco, que estava para acontecer, e o som está muito bonito e está muito João. Aliás, a versão de “Isaura” dele, Laura, é maravilhosa, viu?, que ele faz uma terceira harmonização, eu estava reouvindo esses dias, aí eu fiquei pescando outros acordes que ele faz e incorporando aqui na nossa história [ambos riem].

ZR: Bom, vocês estão indo para as primeiras apresentações de 2024, abrindo o ano com essa homenagem a João Gilberto, eu queria perguntar o seguinte, já que o Cacá falou que essa apresentação é uma coisa meio errática na trajetória autoral dele: alguma possibilidade de esses shows virarem disco?
LL: A gente falou, assim, em primeiro lugar sobre uma impossibilidade [risos] de virar um disco, porque, por um lado, pela pesquisa, enfim, não sei. Acho que a vivência desses shows, e a gente tem a intenção de fazer muito esse show, acho que a vivência desse show vai dizer mais do que uma intenção desse momento, mas a gente fica meio assim, e também questões de direito autoral, porque aí não é só o direito autoral das canções, de regravar as canções, porque a gente está, na verdade, regravando um álbum inteiro, então tem uma questão aí com o João, né? [risos], que não sei, uma questão prática.
CM: Sabe que eu tenho uma opinião estética sobre isso também, Laura, não sei se você concorda, e Zema também, mas eu acho o seguinte: a gente está nas nossas carreiras, independentes e coisa e tal, parece que criou um modus operandi, que é: você grava um disco, faz meia dúzia de shows, no Sesc, não sei o quê lá, depois passa um, dois anos, tem que gravar outro disco. Não à toa que a divulgação do próprio Sesc cometeu um ato falho e colocou “lançamento do álbum Melhor Que O Silêncio”.

ZR: [risos] Pode ser uma premonição.
LL: Eles já criaram o disco por nós [risos].
CM: Eles já criaram. Isso é o modus operandi. E a gente está num lugar tão relaxado, Laura e eu, assim, de que é hora do recreio isso, eu chamo. A gente está fazendo isso por um prazer imenso e esse prazer vai contra o mercado, vai contra a lógica geral das coisas, porque fazer um disco que não é um disco, assim, do ponto de vista de carreira, se a gente quisesse ambicionar alguma coisa com isso, a gente montaria uma outra engrenagem. O que está motivando a gente aqui é querer tocar o João Gilberto no nosso jeito mais sincero e ver se as pessoas vão gostar. Acho que o primeiro desafio é esse. Cumprido isso, daí vai ter, daí a gente vai descobrir se isso vai ser legal, de repente pode até virar um disco e de repente pode virar um disco super experimental e autoral [risos], ao contrário do que a Laura falou, mas depois que a gente fez um monte de shows desse jeito, que a gente conseguiu fazer o João Gilberto, e de repente não pode virar nada, pouco importa, e eu acho que a gente precisa abrir esses espaços nas nossas carreiras, porque se não a gente fica sempre virando um robozinho, né? Grava disco, faz as conversas, divulgação, não sei o quê lá, eu acho bacana fazer um projeto. Quando eu falo errático, eu me sinto totalmente errático como trajetória, não só esse projeto. Eu gosto da ideia do errático, porque o errático é o se perder se achando, né?, e deixar se levar por essa história. Quem sabe vira um disco, quem sabe não. Vai ser um monte de show, bacana, como se fazia antigamente.

ZR: Quero fechar perguntando o seguinte, que é uma pergunta inevitável, já que o Cacá também falou em recreio, esse show do João é um recreio. Tocou o apito, voltamos para a vida normal, o quê que vocês podem adiantar de novos projetos em que estão envolvidos para 2024?
LL: Eu tenho alguns projetos, mas estou naquele momento que eles ainda não estão prontos, então eu não posso falar, por uma questão de expectativas e de simpatia [risos].
CM: [risos] Boa! Eu sou aquele eterno equilibrista, né? Eu fico entre a vida acadêmica e a vida artística. O Sibilina, que é meu último disco, foi em 2018 que eu lancei, fiz bastante show em 19, daí veio a pandemia, eu tinha me prometido fazer um disco esse ano, mas aí acabei assumindo também um cargo dentro da Unicamp, de Diretoria de Cultura, estou escrevendo um livro novo, um trabalho novo, então esse ano que vem, possivelmente vai sair esse livro, e daí eu só vou mexer com canção, fazer um disco novo, daqui a uns dois anos. Eu adoraria parar tudo e poder fazer um disco novo, mas tem essas duas coisas, eu fico me equilibrando. Então é sempre assim, um período de pesquisa e um período de disco novo. Mas esse projeto de João Gilberto está me alimentando demais, porque eu vinha há muito tempo fazendo só o trabalho autoral, então está abrindo o horizonte, de repente abriu perspectivas e uma ideia que eu tinha na cabeça de um disco já mudou completamente. Então eu acho que vai ser bacana deixar maturar um pouco mais isso daí.

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