Carlos Eugênio Paz, o personagem que dá título a
Carlos Eugênio Paz, o personagem que dá título a "Codinome Clemente", durante as gravações do filme. Foto: divulgação

“Codinome Clemente”, terceiro longa-metragem de Isa Albuquerque, terá sua primeira exibição nacional na sessão de encerramento do 42º. Festival Guarnicê de Cinema, que acontece hoje (21), às 17h, no Teatro Arthur Azevedo (Rua do Sol, Centro).

O filme não integra as mostras competitivas do festival, cuja curadoria tem a cineasta entre seus membros, nesta edição. Antes de São Luís, “Codinome Clemente” foi exibido no Festival do Cinema Brasileiro, em Paris, e no LA BR Film Festival, em Los Angeles.

“O Guarnicê é minha casa cinematográfica”, diz a maranhense de Lago do Junco, radicada no Rio de Janeiro há mais de 20 anos. Ela assina roteiro, direção e produção do filme, contribuindo para melhorar o índice de participação feminina em produções audiovisuais brasileiras.

Em entrevista exclusiva ao Farofafá Isa Albuquerque falou sobre o novo filme, o Festival Guarnicê, a paralisia na produção cinematográfica brasileira no atual governo, e comentou outras obras com as quais seu filme dialoga diretamente.

A cineasta Isa Albuquerque. Retrato: Zema Ribeiro
A cineasta Isa Albuquerque. Retrato: Zema Ribeiro

Zema Ribeiro – “Codinome Clemente” é sobre um personagem da resistência à ditadura militar, o Carlos Eugênio Paz. Como é que você se deparou com o personagem e decidiu fazer um filme sobre a trajetória dele?
Isa Albuquerque
– Carlos Eugênio Paz é um guerrilheiro. Eu estava realizando o “Ouro negro”, que é o meu segundo longa-metragem, e é um filme sobre a fundação da indústria do petróleo no Brasil por mãos, digamos, familiares, pessoas comuns, comuns até certo ponto, por que eram intelectuais, Monteiro Lobato etc., várias pessoas, com muito conhecimento, com muita articulação política, que estavam fundando uma primeira indústria de petróleo, ainda independente de iniciativas governamentais. Nessa altura, uma roteirista de “Ouro Negro”, amiga minha, a Duda Elia, me falou de alguém que havia chegado recentemente de Paris e que estava dando aula para o filho dela, aula de violão, e esse era o guerrilheiro Carlos Eugênio Paz, que estava voltando do exílio, praticamente, havia publicado um livro, já havia chegado há uns dois anos e resolveu voltar realmente pro Brasil e começar uma atividade e estava dando aula de violão pro filho dela. Quando ela me falou e eu comecei a conversar com o Carlos Eugênio Paz, eu vi que ele tinha uma narrativa diferente dos demais combatentes, guerrilheiros ou ativistas dos anos 1960, 70, por que ele assumia as ações políticas armadas que ele praticou. É um homem que revela. Por isso ele ficou muito tempo sendo malvisto pela esquerda, que havia feito um pacto de silêncio, ninguém falava nada a respeito disso, as ações que eram praticadas. O discurso era sempre dos que foram presos e torturados, as ações, sequestros e assaltos, as ações mais combativas foram realmente reveladas pelo Clemente, chegou a escrever um livro, que foi bastante combatido, mas é muito bem escrito. É um escritor nato, tem uma narrativa absolutamente clara, fluída, uma memória muito presente de tudo que aconteceu, detalhes. Era um personagem magnífico.

ZR – O teu roteiro dialoga com o livro do Clemente?
IA
– É mais amplo e depois é mais revelador. Quando ele escreveu o livro [ele é autor de Viagem à Luta Armada (Civilização Brasileira, 1996) e Nas Trilhas da ALN (Record, 1997)] ele estava sob pseudônimo, algumas ações estavam sendo relatadas, mas não completamente. Nós tivemos vários anos gravando com ele, a cada gravação que fizemos ele se aprofundava mais, confiava mais, entregava mais detalhes.

ZR – Quantos anos?
IA
– Sete anos. Entre a primeira captação de imagens em Paris até a finalização do filme. Não que fosse uma dificuldade imensa montar essa narrativa. Ele estava muito disposto a tratar disso comigo, abrir mais detalhes, do funcionamento da organização, os atos que ele praticava, que desenvolvia com outras organizações, eram quase 40 organizações de resistência à ditadura dos anos 1960, 70, 80. Então, ele estava muito aberto a revelar suas ações, seu pensamento, sua posição política, mas nós sempre nos deparamos com a escassez de recursos, sempre foi um desafio muito grande, apesar de ser um baixíssimo orçamento, realizar esse filme, por que estávamos sempre nos debatendo com essa questão do recurso para realização do filme. Finalmente está concluído e estamos lutando agora pelo lançamento.

ZR – Ele faz essa première no Guarnicê e qual será a trajetória? Vai percorrer o circuito de festivais, vai pra tevê?
IA
– Ele começou já o percurso de festivais, eu quero fazer em pelo menos mais um ou dois festivais nacionais, estou inscrevendo. Os festivais brasileiros de forma geral foram transferidos para o segundo semestre, por que houve uma suspensão por esse governo dos recursos destinados à Lei Rouanet, as empresas ficaram muito refratárias, houve uma paralisia no nosso sistema de financiamento da cultura no governo desse presidente. Então a classe artística de uma forma geral está procurando sobreviver a essa intempérie e o empresariado precisa ganhar confiança novamente. Por outro lado as linhas de financiamento que estavam consolidadas por meio da Agência Nacional de Cinema e do Fundo Setorial do Audiovisual, que é um mecanismo de autofinanciamento, baseado pelo Codecine [Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional], que é uma taxa paga pelos próprios filmes e que financiam a produção, tudo isso é parado, no meio de uma discussão jurídica entre o TCU [Tribunal de Contas da União] e a Ancine que paralisou o financiamento de novas produções. Então criou-se uma instabilidade, uma falta de segurança jurídica tanto da Agência Nacional de Cinema quanto da própria produção de novos filmes, de forma geral. Nós temos muita sorte de já haver concluído o filme no finalzinho de 2018. Estamos começando a jornada de festivais no Brasil e esperamos estrear o filme na primeira data, agora, no segundo semestre.

ZR – Estrear no circuito exibidor? Salas de cinema?
IA
– Sim, salas de cinema. Nós temos o compromisso de exibir em salas de cinema.

ZR – Que é outro setor que está passando por problemas, o domínio da produção americana. “Vingadores” em todas as salas. Não tem filme brasileiro no cinema, até os filmes da Globo foram derrubados.
IA
– Isso é um problema sério que só pode ser resolvido com uma gestão da própria agência, uma correção do mercado pela Agência Nacional de Cinema. Nós temos uma cota de tela, já tínhamos uma cota de tela de 28 a 30%, isso significa que o cinema americano tem 70% da taxa de ocupação das salas. 70! 70 a 72%, é muita coisa. E nós temos uma produção nacional de 180 filmes por ano. Então, dá perfeitamente para termos uma grade constante de salas de cinema sem prejudicar o circuito americano. No entanto, há uma invasão desse produto americano nas salas de cinema que não existe similar nem mesmo nos Estados Unidos. “Vingadores” teve 97% de ocupação, tirando “De pernas pro ar”, que é uma produção comercial, já fugimos até do autoral, que era uma discussão que havia, o comercial tomava o lugar de nossos 28%, ficávamos brigando com o cinema comercial, agora o comercial está brigando contra o cinema americano, muitas sessões de “De pernas pro ar” foram canceladas depois de vendidas, inclusive, por conta de “Vingadores”. Só se corrige esse tipo de problema com cota de tela. Nos Estados Unidos esse filme ocupou só 12% do mercado exibidor. Por que que num país como o Brasil, que tem uma produção forte, está começando a se fortalecer, a indústria está começando a se consolidar, permite-se que haja uma ocupação de 97%? É uma crítica que eu faço à atuação da Ancine nesse episódio. Agora é necessário a gente ter proteção ao mercado interno. Os americanos protegem o mercado deles, por que é que a gente não pode proteger o nosso mercado?

ZR – Você consideraria a realização desse filme, o lançamento nesse momento político conturbado que o Brasil atravessa hoje, uma ação de guerrilha?
IA
– Realizar esse filme foi desde o início uma guerra de guerrilhas. Guerra de guerrilhas era um termo usado pelo [Carlos] Marighela, que foi fundador da Ação Libertadora Nacional, em cuja organização atuou o Clemente. Cada etapa foi muito árdua, captação, consegui o primeiro recurso pra rodar o filme, consegui o segundo recurso, tudo pelo Fundo Setorial do Audiovisual, para completar a produção, e depois a finalização, teve muito boa vontade também, por parte dos analistas, que foram vendo que o filme estava acontecendo, sem esse mecanismo seria impossível concluir. Sem a ação desses gestores não teria acontecido. É preciso que o produtor esteja sempre trabalhando, não só na linha de frente da captação, mas na negociação política para se conseguir finalizar um produto. Eu sou produtora, diretora, roteirista, então, enfim, um trabalho extremamente autoral, eu tenho que estar em combate, no corpo a corpo o tempo todo, para que o filme saia, seja exibido, enfim. Espero que um dia nós possamos ter menos sofrimento para colocar um projeto como esse no mercado. São só duas horas de produção. É inacreditável que tenhamos que gastar anos para realizar duas horas de produção. Isso ainda se deve a esse sistema, passa por muitos filtros, e tem que passar, mas não precisa passar dois anos para analisar um projeto, aprovar, pra depois sair o recurso para a efetivação daquela etapa, entendeu? Muitas vezes em função da busca de correção na execução do projeto se prejudica a própria execução do projeto. Espero que se consiga agilizar esse processo, por que não se pode gastar tanta vida para realizar um filme.

ZR – Você falou da ação do Clemente dentro da organização do Marighela, que é outro personagem recentemente biografado, no cinema pelo Wagner Moura, a partir do livro do Mário Magalhães. É emblemático que esses filmes saiam no período em que a gente está vivendo uma nova ditadura, embora eleita pelo voto popular.
IA
– Tudo isso parece uma construção do destino, se o destino existir. Eu comecei a realizar esse filme em 2012, a captar a partir de 2009, vindo até aqui, concluí ano passado.

ZR – Como você está falando são 10 anos para realizar um projeto.
IA
– É, é muito tempo. Executando mesmo, a partir do momento em que a agência permite a abertura dos recursos, por que nós só conseguimos acessar os recursos a partir de uma autorização da agência e a partir de um determinado valor composto do orçamento, que permita a efetiva realização do filme, então a partir daí, da realização, efetivamente sete anos.

ZR – Ainda assim, muito tempo.
IA
– É. Ainda assim, muito tempo. O Wagner deve estar por aí também, por volta de quatro, cinco anos de realização do filme dele. Tendo sido proposto por uma grande produtora, como a O2. Então, mesmo uma grande produtora como a O2, que tem uma movimentação muito grande de capital, por conta de seu braço publicitário, que é basicamente uma agência de publicidade, a maior de São Paulo, ainda gasta-se tempo de produção. É também um tema muito difícil de financiar, por conta da reação do empresariado de uma forma geral. Não é um tema que eu vá tranquilamente numa empresa que queira financiar o filme, então tem que ser com recursos públicos, pra resgate da memória da história recente. O Carlos Eugênio Paz ainda vive, é um homem de 68 anos enfrentando um câncer, uma situação frágil de saúde.

ZR – Isso casa com o que você estava falando: tanto tempo para realizar um filme, de repente se perde o personagem, a testemunha ocular, e fica uma história inconclusa.
IA
– Pois é, exatamente. É preocupante. Por outro lado, do ponto de vista da técnica documental, da técnica narrativa, algumas leis do documentário afirmam que é preciso deixar o documentário ser feito depois de 60 anos que os agentes históricos morrem. Mas eu acho que você perde o testemunho ocular do agente, aquele que praticou a história, que foi parte da história, que construiu a narrativa com a sua vivência, se perde. E aí fica a frieza dos documentos, de alguns historiadores, sempre há uma percepção no meio que não é de quem viveu, que praticou. Essa tendência no documentário brasileiro, de estar presente no calor da história, acho que é a grande novidade da linguagem documental. É uma cinebiografia sob formato documental. O “Marighela” do Wagner Moura já é uma ficção baseada em fatos reais, um personagem real, muito bem dirigida. Eu nem sabia que o Wagner Moura estava realizando este filme, soube por uma nota de jornal depois. Ele dirigiu, eu vi o filme dele em Paris, junto com a exibição de meu filme, muito bem realizado.

ZR – Estou curiosíssimo, mas ele está com dificuldades em estrear no Brasil.
IA
– Esse é um momento muito curioso, tanto pra mim, quanto pra ele. Acabamos realizando um filme sobre uma realidade recente que está sendo alterada, nosso passado é incerto. Estão fazendo um remake de nossa história. Então, quando nós realizamos filmes que resgatam a história recente, nós encontramos essa dificuldade, de colocar a versão das pessoas que de fato atuaram vivamente sobre a história. O Marighela é um personagem fortíssimo, como combatente, o Carlos Eugênio Paz também. Essa versão é nova. Você sempre encontra, quando eu comecei a conversar com ele, isso foi o que mais me chamou a atenção, você foge daquela narrativa do exílio, do guerrilheiro preso, torturado etc., que é importante, é importante mostrar que houve esse grau de violência praticado pelo Estado. O Estado assassinou, torturou, causou o desaparecimento de pelo menos 400 pessoas. Essa recuperação dessas informações que não estão mais na memória do público hoje, o público não sabe ou não quer mais saber exatamente do que está acontecendo, o cinema pode recuperar, mostrar que nós tivemos esse passado, que é um passado épico, que houve pessoas tentando criar um outro país, um outro sistema de governo e quais foram as consequências disso. Nós tivemos 21 anos de ditadura, isso não é pouco, não são 21 dias. Apesar disso, voltamos a respirar uma democracia e novamente agora estamos vendo esse fôlego ser abafado.

ZR – Não te parece paradoxal, voltando a essa dificuldade de estreia de filmes como o teu, o do Wagner Moura, o do Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, o “Bacurau”, o Brasil vem de um momento muito bom do cinema, sobretudo o pólo de Pernambuco, muitos cineastas revelados, muitos filmes que hoje já podemos considerar clássicos na cinematografia brasileira, falando de anos 2000 pra cá, e de repente, puf! Nada! Nada de produção, nada em salas de exibição.
IA
– Eu acho que está havendo uma tentativa de excluir a cultura da vida brasileira, como se isso fosse possível. Não é. Você pode, digamos, como poder público, você pode exterminar uma produção, mas não vai conseguir abafar a ânsia de liberdade e a necessidade de expressão. Então de alguma forma nós sempre vamos conseguir, como artista, nos expressarmos. Também é uma estratégia econômica, por que no final das contas, o que é muito curioso, esses instrumentos públicos que foram criados, como a Agência Nacional de Cinema, a agência dá lucro. Hoje uma agência que movimenta aproximadamente 2,5 bilhões de reais por ano, dá lucro. São 180 filmes sendo realizados, articulações com vários países, então, nós estamos sofrendo com a falta de visão desse governo, no final das contas. É uma indústria sem fumaça, alimenta, cada filme cria pelo menos 300 empregos temporários, entre pré-produção, produção e finalização, das mais diversas atividades, desde a costureira de set, passando pelo ator, pelo controle, contador, cenotécnico, cenógrafo, é uma atividade que gera muito emprego. E que depois das políticas de descentralização da produção está dando voz e expressão aos diversos Brasis, você vê que há, atualmente são 12 mil empresas registradas na Agência Nacional de Cinema. As que têm condições de atuar como produtoras mesmo, que estão atuando, que têm projetos, são 3 mil. Ainda existe uma diferença muito grande entre as grandes produtoras, que são 10, 15, que tem acesso a financiamento imediato, e o restante, que são as pequenas empresas, mas no cômputo geral, ao quebrar essas linhas de financiamento, ao se estabelecerem crises baseadas na insegurança jurídica, o que acontece? Simplesmente se trabalha para afundar um braço importante de economia que estava crescendo. O único braço da economia que estava crescendo nesses últimos anos, depois do golpe de 2016.

Codinome Clemente. Cartaz. Reprodução
Codinome Clemente. Cartaz. Reprodução

ZR – Uma coisa que me chamou a atenção no trailer de “Codinome Clemente” é o uso de grafismos. É algo de que eu lembro nos telejornais da infância, a reconstituição de um crime era feita com uma animação, e você recorre a isso para ilustrar uma ação armada, o que deu um charme. Eu queria que você falasse um pouco desse recurso, que deve servir também para baratear os cursos do filme.
IA
– Sim, fazer o live action é muito mais caro, seria outro orçamento. Nesse caso a recuperação das ações armadas, foram seis sequências dramatizadas com animação. Houve uma opção estética, por que todos eles eram muito jovens, eu queria dar uma estética de quadrinhos, trazer mais esse clima psicodélico, trabalhar cores que chamassem mais os  anos 1960, 70, e para além de tudo, trabalhar com as sequências de ação naquele contexto, reforçando a narrativa do Clemente. Por que era importante enfatizar: ninguém nunca fez isso. Todo mundo que fala de ação armada, fala “não, eu estava ativista das massas”, ninguém nunca pega em armas. Agora o Wagner Moura mostra o Marighela também nas ações armadas. Eu sou pacifista, eu gostaria que não fosse preciso ter havido essa necessidade. Uma juventude inteira se encontrar na luta armada para garantir liberdade. Isso é um direito essencial do ser humano. Mas é preciso mostrar a história como ela aconteceu. A partir dessa narrativa, recuperar as ações armadas reforça esse ponto de vista do Clemente, eu passo tudo através do ponto de vista dele, eu sou uma observadora. A narrativa que eu escolhi, o modo de fazer, foi o observativo. Eu me eximo de participar da narrativa, eu não estou lá dentro. É ele que está. Ainda bem, ainda mais agora, nesse momento, que precisamos resguardar esse testemunho dele. Então, a animação foi feita por desenhistas e animadores de origem francesa que moram em São Paulo. O Gilberto Lefevre é brasileiro, mas é filho de franceses, a Suzana Lefevre, o Sylvain Barrè é francês e mora em São Paulo. Uma equipe de paulistas atuando nesses desenhos. Foi bem interessante.

ZR – Eu gostei muito do resultado. Para fechar eu queria te perguntar sobre outro filme, já que você fez parte da curadoria dessa edição do Guarnicê, que também vai dialogar com essa turbulência brasileira constante. Eu entrevistei os diretores e um ator de “Legalidade” [Léo Garcia, Sapiran Brito e Zeca Brito circulavam no hall do hotel onde a entrevista aconteceu] e queria que você comentasse um pouco esse filme.
IA
– O “Legalidade” é um filme magnificamente bem realizado. O diretor está em seu sexto filme, é jovem mas muito maduro. Traz esse universo do [Leonel] Brizola, um grande personagem, um dos maiores políticos que o Brasil teve. É outro recorte histórico que precisava ser mostrado. Nós não temos muitos filmes que falem, com uma narrativa cinematográfica mais dramatizada, nós sabemos pouco, por isso temos a memória tão curta. Por isso para além de fazer os filmes bem, temos que lançá-los bem. Para que o público vá ver. Nós temos o “Codinome Clemente”, que é minha parceria com o Canal Brasil, então depois que sair das salas de cinema vai entrar na televisão. Nós precisamos começar a fazer a jornada do cinema, do filme, no cinema, é nossa primeira janela. O “Legalidade” também vem completar esse mosaico, eu acho que o público deveria ir compondo a memória da história brasileira a partir do cinema. Esses filmes deveriam constar do currículo escolar. É importante que os estudantes, de uma forma geral, aprendam história não só através dos livros de história, mas com a reconstituição histórica que o cinema está fazendo. Tem bons filmes sobre isso, não só documentários, mas os ficcionais que estão saindo agora. “Marighela” é um filme muito forte também, dialoga com o Clemente, e foi também uma feliz coincidência que os dois filmes se encontrassem agora, no ano de lançamento. E um completa, digamos, a narrativa do outro. O “Marighela” não é um documentário e a contextualização vem sendo feita pelo “Codinome Clemente”, são dois filmes que dialogam. Clemente foi um discípulo muito próximo do Marighela, entrou na luta armada com 16 anos. São filmes que se completam. O “Legalidade” traz um contexto histórico anterior ao golpe de 1964. Todos os golpes que aconteceram e que geraram o grande golpe de 1964. Todo aquele drama vivido pelo [João] Goulart, enfim, que acabou gerando o golpe de 1964. São filmes que se completam. É um período bastante turvo que nós precisamos conhecer pra não repetir. O que aconteceu conosco, por essa falta de memória? A esquerda brasileira perdeu o contato com as bases. Quem fazia esse contato com as bases era a igreja progressista, os padres que entravam nas comunidades, os padres dominicanos, inclusive. Que são, no “Marighela”, retratados, o processo de tortura deles, o extermínio desses padres pela ditadura é dramatizado pelo “Marighela”. A partir daí esses padres foram excluídos da ação junto às comunidades pelas próprias estruturas internas da igreja. No momento em que eles se retiram chegam as grandes estruturas neopentecostais, que vêm com outro discurso, conservador, que está emergindo agora na sociedade brasileira. Esses fenômenos, que trazem uma bancada grande evangélica no congresso, e nos deixa à mercê de perder o Estado laico, quase não somos mais um Estado laico, todo mundo faz uma apologia, se julga emissário de Deus, o próprio Jesus reencarnado etc., para gerir o Estado de Direito. A partir daí está emergindo uma sociedade muito conservadora, muito retrógrada, e isso nos preocupa como artistas. Por isso a arte está sendo sacrificada, a gente está vendo a satanização da arte a partir dessa nova mentalidade que o país está adotando. É preocupante!

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Veja o trailer de “Codinome Clemente”:

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