Nada do que vem de Madonna é simples. Nunca foi e continua não sendo. Mesmo que a crítica esteja há mais de 30 anos tentando desmerecê-la – a voz não é boa o bastante, o rosto não é bonito o bastante, ela não é mais jovem o bastante -, a sua música consegue atingir proporções pouco alcançadas na cultura pop. Lançado em junho, Madame X é o seu 14º disco de estúdio e combina diversos ritmos mundiais com pop, refletindo a sua atual vivência em Portugal.

O momento

Madonna mudou-se para Lisboa em 2017 para apoiar o filho David com a carreira no futebol – muitos dizem que a eleição de Donald Trump também a motivou a sair dos Estados Unidos. Vivendo como uma “soccer mom”, ela se viu isolada e solitária. A música era o melhor remédio para isso, e alguns amigos a levaram para explorar a vida noturna da cidade portuguesa. Ali a artista foi apresentada a diversos músicos que se apresentavam de forma intimista, sem se preocupar com quanto dinheiro fariam naquela noite cantando. A guitarra portuguesa, a morna, o fado e o grupo Batukaderas deixaram Madonna apaixonada, e já certa de que queria trabalhar com esses “novos” sons em seu próximo trabalho.

Ao mesmo tempo, diversos eventos aconteciam pelo mundo. A crescente de discursos totalitários e opressores, massacres em escolas, ataques em boates LGBTQ+, massacres em países africanos ignorados pela grande mídia, agressões racistas e homofóbicas, mulheres cada vez mais estigmatizadas, discursos a favor do porte de armas, movimentos racistas, protestos anti-LGBTQ. Ainda que “isolada” na rotina em um outro país, Madonna assistia ao mundo e não poderia se manter alheia a tudo que acontecia.

A persona

Em postagens nas redes sociais e num video teaser para o disco, Madonna apresenta seu novo alter ego: “Madame X é uma agente secreta viajando ao redor do mundo, trocando sua identidade, lutando por liberdade, trazendo luz a lugares sombrios. Ela é uma professora de dança, uma professora, uma chefe de estado, uma governanta, uma prisioneira, uma estudante, uma professora, uma freira, uma cantora de cabaré, uma santa e uma prostituta’’. No teaser Madonna aparece com diferentes visuais, loira e morena, tocando violão e saxofone, cantando, fugindo, datilografando, dando aulas de dança, usando um tapa olho com “X” escrito.

Aluna de dança de Marta Graham, Madonna foi nomeada Madame X por ela aos 19 anos. Numa conversa entre as duas Marta lhe disse: “Vou te dar um novo nome. ‘Madame X.’ Todos os dias venha para a escola e eu não a reconhecerei. Todos os dias mude de identidade, você é um mistério para mim”, numa brincadeira referente ao filme homônimo de 1929.

O vazamento

Durante o desenvolvimento de seu disco Rebel Heart, Madonna teve mais de 50 canções ainda em produção vazadas na internet, o que a deixou muito abalada e impactou diretamente nas vendas do disco. Desta vez surgiram trechos de canções do Madame X em diversas redes sociais devido a um problema de logística de algumas lojas e distribuidoras responsáveis pela pré-venda do álbum: algumas pessoas já receberam o disco, e começaram a divulgar em suas contas pessoais o material. Muitos perfis foram derrubados, devido ao emprenho da equipe de Madonna em evitar a propagação do material na rede, mas ainda assim muitos ouviram trechos de canções e mesmo o disco inteiro na internet antes do lançamento. O impacto desse vazamento foi muito menor do que o ocorrido com Rebel Heart, que ocorreu meses antes do lançamento.

O disco

Em entrevista para a revista portuguesa Visão, a artista diz que o álbum nasceu da guitarra portuguesa, cuja melancolia a inspirou muito. Ela também o considera uma “continuação do American Life”, álbum de 2003 com forte discurso político e contra as políticas armamentistas dos Estados Unidos na época. Nas 14 faixas de Madame X Madonna passeia por diferentes regiões do mundo e de sua história, revelados pelo olhar de quem é hoje.

Na canção “Medellin” Madonna e Maluma narram um sonho latino, que em seguida é interrompido por “Dark Ballet” numa mistura assustadora de Madonna, autotune e a ópera “O Quebra-Nozes”. “God Control” fala do controle de armas ao fundir coral e discoteca. ”Batuka foi escrita junto do filho David Banda e é cantada em parceria com o grupo Batukaderas, de Cabo Verde. Madonna traz o fado em “Killes Who are Parting” ao cantar “as dores do mundo” que vivemos, inclusive com trechos em português. Em “Extreme Occident” ela fala do sentimento de isolamento vivido em Portugal. A parceria com Anitta na regravação de “Faz Gostoso”, da portuguesa Blaya, mistura funk carioca e samba e é o momento mais divertido do álbum. A disco music volta forte em “I Don’t Search I Find”, um verdadeiro hino para as pistas de dança, e em “I Rise” Madonna canta sobre liberdade e resiliência.

Três faixas-bônus foram lançadas em algumas versões físicas do álbum. “Funana” é uma homenagem ao ritmo homônimo de Cabo Verde, e na letra Madonna reverencia artistas que já morreram como Whitney Houston, George Michael, Aretha FranklinPrince. “Back That Up to the Beat” é originalmente uma demo do álbum Rebel Heart, que foi retrabalhada. “Ciao Bella” é uma mistura de disco com ritmos africanos, cantada com o cantor Kimi Djabate, de Guiné Bissau.

A turnê

A Madame X Tour foi anunciada como uma série de shows intimistas, realizados em grandes teatros da América do Norte e Europa – formato de turnê nunca adotado por Madonna, que desde o início da carreira lotou estádios e arenas ao redor do mundo. Com início em setembro, os ingressos para todos os shows esgotaram em questão de minutos, e em muitos locais antes mesmo da venda para o público geral. A quantidade de shows anunciados também gerou revolta entre os fãs que não conseguiram lugar para ver o show. Numa postagem em seu Instagram, Madonna disse que a turnê de teatro é só um começo, e que reclamar sem saber é um sinal de burrice.

Algo que deve ser questionado é: se Madame X é uma agente que viaja ao redor do mundo e se inspira em ritmos latinos, africanos e portugueses, é muito incoerente e problemático se a turnê não possuir pernas em países além da Europa e América do Norte. Se esses ritmos são incríveis e cativantes, que sejam apresentados aos públicos das culturas que os inspiraram, e não só para países predominantemente brancos e centrais.

O que esperar então?

Deslocar-se permite aguçar o olhar, sobre o mundo e sobre si mesma. Madonna canta as dores de um mundo cada vez mais polarizado politicamente, com o crescimento de extremismos e violências do Estado contra as mulheres, LGBTQ+, negros e outras parcelas da sociedade. O sentimento de vulnerabilidade permeia o disco, sendo provavelmente essa a maior influência dos ritmos portugueses no álbum. A união de sons e ritmos tão únicos pode soar estranha num primeiro momento, mas Madonna lembra a todos de um de suas maiores habilidades: a capacidade de criar narrativas que funcionam individualmente (cada canção) e em conjunto (o álbum em si).

Se é o melhor disco desde Confessions (2005), ou o novo Ray of Light (1998), pouco importa. Madame X é o disco de 2019, o disco de agora, e isso é importante – pela força, pela resiliência e pela mensagem de amor que traz. Com letras atuais e densas, a coragem de ser, de estar viva e de querer falar e mostrar isso quando te querem sem voz é a maior das revoluções de Madonna.

“Madame X adora dançar. Porque você não pode atingir um alvo em movimento.”

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