O cantor e compositor (e sambista) Zeca Baleiro - foto: Necka Ayala/ divulgação
O cantor e compositor (e sambista) Zeca Baleiro - foto: Necka Ayala/ divulgação

A justaposição que intitula esta resenha é chiste que publiquei em uma rede social na véspera do lançamento: chegou hoje (27) às plataformas de streaming (e em breve vai ganhar edição em vinil, valorizando a capa, de Elifas Andreato (1946-2022), talvez a última encomenda ao genial artista) o aguardado O Samba Não é de Ninguém (Saravá/ OneRPM, 2023), álbum que Zeca Baleiro dedica ao samba.

Quem, como este resenhista, acompanha a carreira do maranhense desde a estreia, há 26 anos, com Por Onde Andará Stephen Fry? (1997), lembrará que o samba sempre se fez presente: “Kid Vinil” no primeiro disco e o dueto com Zeca Pagodinho em “Samba do Approach”, faixa de Vô Imbolá (1999), seu segundo álbum, e mais exemplos não faltariam.

A presença do samba na vida de Zeca Baleiro está presente desde antes de sua opção pela música e/ou estreia em disco. Clássicos do gênero frequentavam as vitrolas da família e o artista sempre tratou-o com reverência, algo (quase) sagrado, tanto que classifica suas incursões pelo universo como anedóticos ou paródicos.

"O Samba Não é de Ninguém". Capa. Reprodução
“O Samba Não é de Ninguém”. Capa. Reprodução

O Samba Não é de Ninguém começou a ser gestado em 2013, quando Baleiro realizou uma primeira sessão de gravações com a intenção de finalmente reunir em disco sambas, digamos, mais sérios – mas sem perder o bom humor – compostos ao longo da jornada. Somente em 2019, uma segunda sessão foi realizada; outros projetos do artista, somados à pandemia de covid-19, foram empurrando o disco para depois; no período, o cantor e compositor, autor da íntegra do repertório – três das 11 faixas em parceria – aproveitou para gravar vozes e vocais e realizar todo o trabalho de pós-produção – o violonista Swami Jr. (parceiro em “Duas Ilhas”, que fecha o álbum e em que ele toca violão sete cordas) assina arranjos e produção.

Além de Swami Jr. (violão), Zeca Baleiro está acompanhado por Zé Barbeiro (violão sete cordas), Gian Correa (violão), Henrique Araújo (cavaquinho e bandolim), Douglas Alonso (percussão e bateria), Vitor da Candelária (percussão), além do coro de Alemão do Cavaco, Ana Duartti, Lissandra Oliveira, Marcello Furtado e Tatiana Parra, e as participações especiais de Rubinho Antunes (flugelhorn em “Santa Luzia”), Allan Abbadia (trombone em “Amorosa”), Alexandre Ribeiro (clarinete em “Eu Pensei Que Você Fosse a Lua” e clarinete e clarone em “Flores da Razão”), Tiago Costa (piano em “Pedra Fria” e “Duas Ilhas”) e Teco Cardoso (flauta em Sol em “Duas Ilhas”).

Saudades, amores, dores, alegrias, prazeres, sonhos, esperanças e alguma dose de malandragem são alguns temas comuns ao imaginário sambista que também atravessam O Samba Não é de Ninguém desde “Santa Luzia”, que abre o álbum. “O que eu queria era não ter saudade do amor/ remédio pra tanta tristeza e dor/ o sol que vem/ não brilha mais/ meu samba nem/ reconhece meus ais”, diz a letra, que arremata: “a miséria chora, amor/ a miséria chora”.

A faixa-título se aproxima, tematicamente, de “O Mistério do Samba” (Fred Zero Quatro/ Marcelo Pianinho), faixa de abertura de Por Pouco (2000), da banda pernambucana mundo livre s/a. Ao mesmo tempo em que O Samba Não é de Ninguém, Baleiro presta reverências a nomes fundamentais do gênero: Tom Jobim (1927-1994), Jorge Ben, Paulinho da Viola, Martinho da Vila – de quem Baleiro regravou “Disritmia” em 1999 –, Dicró (1946-2012), Benito di Paula (de quem Baleiro já havia gravado “Retalhos de Cetim”, em 2006), Zimbo Trio, Dona Ivone Lara (1921-2018), Clara Nunes (1942-1983) – cujo clássico “Tristeza Pé no Chão” (Armando Fernandes “Mamão”), de seu repertório, Baleiro regravou em 2003 –, João Nogueira (1941-2000), João Bosco e João Gilberto (1931-2019), além de Vinícius de Moraes (1913-1980) e Baden Powell (1937-2000), indiretamente citados através do afro-samba “Canto de Ossanha” – “o samba um canto de Ossanha/ no samba meu santo se assanha/ e samba”, canta Baleiro.

A propósito do Zimbo Trio, o verso “o samba é o Zimbo no jazz” é desconcertante, em um álbum de imagens poderosas (vide “Duas Ilhas”, que o encerra, única não-inédita do repertório, gravada pelos parceiros em dueto em Outra Praia (2007), álbum solo de Swami Jr.). Ainda na faixa-título, para além de criadores, Baleiro, “nos passos de Luma [de Oliveira, atriz e modelo] e Pinah [da Beija-Flor; a passista Maria da Penha Ferreira Ayoub, a “cinderela negra” que chamou a atenção do Príncipe Charles no desfile da escola de samba de Nilópolis em 1978]” – que causaram frisson em desfiles de carnaval –, homenageia outros modos de viver o samba.

Outros mestres comparecem aqui e acolá – “A Voz do Morro Não Morreu” tributa Zé Ketti (1921-1999) e sua “A Voz do Morro”, citando também “Diz Que Fui Por Aí” (Zé Ketti/ Hortênsio Rocha); o gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914-1974) é o homenageado de “Triste Lupicínio”, por cuja letra passeiam também Vinícius de Moraes, Aldir Blanc (1946-2020) e Ismael Silva (1905-1978), além de diversas obras-primas do inventor da dor de cotovelo.

“Eu quero a chama que queima/ tutano, caroço, tato/ quero velar o abismo/ e ir às veias de fato/ eu tenho medo da morte/ da morte do amor, me entenda/ se o vento anima o fogo/ venha, amor, e me acenda”. Autorreferentes, mas nunca pedantes, as duas últimas estrofes de “Pedra Fria” lembram o mote de “Lenha”, que o autor gravou em 1999 e, antes, Rita Benneditto, em seu álbum de estreia (então Rita Ribeiro, 1997).

Desde que despontou na música popular brasileira, Zeca Baleiro está acostumado a figurar em listas dos grandes nomes da cena, lugar em que raramente figura um de seus ídolos de cabeceira, Paulinho da Viola; o portelense em geral afastado dali pelo rótulo – reducionista, no caso – de sambista. A fina ironia é que agora Baleiro também pode ser considerado um dos grandes do samba. “A minha voz ainda sabe cantar samba/ eu já fui bamba e ainda posso ser”, como ele mesmo canta em “A Voz do Morro Ainda Não Morreu”. Os 10 anos de espera por O Samba Não é de Ninguém valeram a pena.

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Ouça O Samba Não é de Ninguém:

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