A tristeza é senhora em Aldir Blanc Inédito, um álbum coletivo em celebração à inventividade que o compositor carioca Aldir Blanc manteve até o fim, em maio de 2020, quando se tornou uma das primeiras vítimas fatais da covid-19 na classe musical brasileira. Não podia ser diferente, dada a insanidade com que o Brazil com Z presenteou o artista ao final de seus 73 anos de vida, lado a lado com hoje quase 600 mil conterrâneos. Quem capitaneou a empreitada foi a viúva de Aldir, Mary Lúcia de Sá Freire, que reuniu manuscritos, letras e poesias inéditas e convidou cantores e músicos importantes na trajetória do compositor para música-los. Em poucos casos, as canções já estavam finalizadas antes de o projeto ser erguido.
O elenco, em tudo sincronizado com a filosofia musical do selo carioca Biscoito Fino, tem ampla afinidade com o imaginário blanquiano. O único momento que esvai alguma alegria é a faixa de abertura, “Agora Eu Sou Diretoria”, deixada a cargo, com toda justiça, a João Bosco, principal parceiro da fase inicial de Aldir. Não à toa, é um samba que começou a existir em 2013, a princípio para uma campanha publicitária de cerveja, que não chegou a ser aproveitada. “Oba, chegou a nossa hora, vamos lá comemorar/ ô, manda aí um montão de copo/ o bicho vem pra pegar/ louras sambando aqui na mesa/ entre a coxinha e o camarão/ esquentam a levada desse samba/ puxado a cavaco e violão”, canta João, tal e qual nos dourados tempos mundanos e suburbanos da dupla, num esforço sobre-humano por espanar a tristeza. “Entrei pra escola da alegria/ passei no vestibular/ toda chefia principia/ um jeito de governar/ mandei uma filosofia/ feliz é quem na diretoria/ apoia a charanga a poseia/ na base da só simpatia/ eu tô na foto da folia/ eu tô vendendo simpatia”, seguem os versos, hoje cantados para um país cuja diretoria não apoia nem a charanga nem a poesia – ou melhor, um país onde a diretoria nem mais existe.
A fossa se espalha pelas demais 11 melodias e pela maioria das letras. Feita em 2017 para Maria Bethânia, “Palácio de Lágrimas” ganha a voz da dona e melodia de Moacyr Luz, em versos como “não tem fim esse querer/ de saudade, areia e sal/ com lágrimas ergo a você/ um outro Taj Mahal”. Chico Buarque dá voz a “Voo Cego”, musicada por Leandro Braga e alicerçada em simbolismos tipicamente blanquianos, sob eu-lírico feminino: “Quando o fogo do meu corpo foi virando/ a bruma consentida entre os casais/ pombas neuróticas se ergueram em bando/ partindo feito velas do meu cais/ então eu fui silêncio falso e brando/ nenhuma ave em mim e em meu marido/ as pombas foram aos pares procurando/ onde o desejo havia se perdido”.
Soturna e fastigiada é “Acalento” (muito pouco a ver com o “Acalanto” de Dorival Caymmi, de 1957), parceria com João Bosco e Moacyr Luz, na interpretação de Ana de Hollanda: “Ando cansada do amor/ que só me trouxe desgosto/ (…) me cansa a antiga procura/ pelo prazer sensual/ tão rotineira a aventura/ a excitação tão banal”. A conclusão é devastadora: “Esse cansaço profundo/ que não parece ter fim/ descubro não é do mundo/ estou cansada de mim”.
Cantada por Leila Pinheiro e Guinga (também autor da melodia), a climática “Navio Negreiro” aborda o afrobrasil (com S) sempre caro a Aldir em negativo e critica o racismo de ontem e, infelizmente, de hoje: “Doloroso imaginar/ que o tumbeiro me leva sobre o mar/ tanto azul embaixo de mim/ e acima de mim vibra o ar/ aqui dentro a escuridão/ me estrangula, sou rei de uma nação/ (…) eu sou o escuro, eu durmo desperto/ eu tinha o deserto, a lua, o poente/ presentes de Oxalá/ e na escravidão não vou clarear”.
Como numa fusão entre a “Inquietação” (1935) de Ary Barroso e a “Asa Branca” (1947) de Luis Gonzaga, “Baião da Muda” exemplifica a parceria tardia com Moyseis Marques e também com Nei Lopes. “Quem se deixou amordaçar/ e aí se foi sem reclamar/ sem dizer sim nem que não/ quem que avoou sem nenhum pio/ foi lá pras bandas de outro rio/ ave de arribação/ (…) foi, emudeceu o meu olhar/ secou até a água do mar”, canta Moyseis. “Tem que se saber dançar/ pra poder aguentar esse rojão”, encontram-se em Aldir o rojão-forró e o rojão-nação.
Sueli Costa conta que compôs cinco canções em parceria com Aldir, uma delas “Ator de Pantomima”, de 1978, jamais gravada. Ajustava-se aos anos de ditadura militar, ajusta-se a anos de extrema direita paramilitar: “Eu, ator de pantomima,/ me nego a beber na mesa/ dos mosqueteiros do rei”. Joyce Moreno coloca melodia e voz em “Aqui, Daqui”, a partir de um poema publicado em jornal em 1986 e dotado de frescor feminista: “Dormindo aqui, a mais selvagem/ a mais pura/a que não sabe nada e tem mais jogo de cintura/ e saindo, no dia seguinte, uma mulher/ maravilhosa, inteira e íntegra”.
A dor de cotovelo, nessa e em “Provavelmente em Búzios”, musicada por Cristóvão Bastos e cantada por Dori Caymmi, mora mais nos andamentos musicais que nos versos. “Eu não conheço a palavra perder/ tudo que é triste eu torno sublime/ de cada morte eu sei renascer/ a covardia é um crime”, filosofa “Provavelmente em Búzios”, datada de 1993.
A afirmação feminina aparece em detrimento à masculina em “Mulher Lunar”, melodia de Luiz Carlos da Vila e Moacyr Luz e voz desse último: “Mulher lunar/ a cada toque que eu te dou/ a cada lasca que retiro/ eu perco um pouco/ e você ganha mais valor”. “Outro Último Desejo”, musicada e cantada por Clarisse Grova, parafraseia o “Último Desejo” (1937) crepuscular de Noel Rosa, banhado em dose extra de fel: “Aos canalhas que eu odeio/ diga que fui seu esteio/ que pensa em voltar pra mim/ que meu nome ainda lhe causa/ no coração uma pausa/ e o remédio é um botequim/ mas se a figura me preza/ pragueje e diga que reza/ pro meu fim ser de indigente/ que o tesão não rolava/ e que você me enganava/ com qualquer bobo atraente”.
Também nada gratuitamente, o tributo termina com uma canção de fossa chamada “Virulência”, retirada de um mosaico de ideias compartilhadas com o ator Alexandre Nero, que planejava um espetáculo teatral a partir da obra de Aldir. Com interpretação que lembra João Bosco, Nero canta os atualíssimos versos musicados por ele e Antonio Saraiva: “Um vírus nos virou do avesso/ nos arremessou pra dentro/ um tiro nos atirou por entre a Maré/ (…) madrugada ouço o choro de crianças baleadas/ que brincando tombam na sala/ quilombolas, guajajaras/ machucadas nas florestas/ e favelas por um fio/ equilibristas no nada”. O encerramento é prova cabal de que nunca, nunca, nunca Aldir deixou de retratar com fidelidade o Brasil (inclusive aquele com Z, que viria a matá-lo). “É preciso inventar um lado de fora/ é preciso ventar”, diz o refrão, num último sopro de esperança desesperançada.
Aldir Blanc Inédito. Vários artistas. Biscoito Fino. Nas plataformas digitais a partir de 24 de setembro.