Casa de vampiro não cai

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Algumas edificações se incorporam ao espírito das cidades de maneira inapelável – não se trata de uma vontade, mas de uma imposição invisível, algum feitiço do destino. A casa do alquimista Nicolas Flamel, em Paris. O Chelsea Hotel que foi quartel-general da blank generation, em NYC. A casa natal de Galileu Galilei em Pisa, Itália. O Hotel Majestic, onde viveu Mario Quintana, em Porto Alegre. A casa de Fernando Pessoa (e seus quatro principais heterônimos) em Lisboa.

Em Curitiba, provavelmente, a casa mais famosa da cidade é aquela onde residiu, durante quase toda sua vida (ele tem 98 anos agora), o arredio escritor Dalton Trevisan, o célebre Vampiro de Curitiba, o menos avistado e mais aclamado autor brasileiro vivo. Fica no Alto da Rua XV, na esquina da Amintas de Barros com a Ubaldino do Amaral.

Não é um casarão particularmente interessante do ponto de vista arquitetônico, foi erguido no final dos anos 1920 no parapeito da calçada. Quatro janelas envidraçadas (uma delas foi porta, no início, quando a casa abrigou um armazém) e uma ex-janela selada com tijolos comunicam-se com a rua. No telhado, uma mansarda que indica a existência de um sótão. É como se fosse uma espécie de teatro com as cortinas permanentemente baixadas. Atrás da casa, três “puxadinhos” de tamanhos diferentes, um deles que teria sido, segundo amigos, o escritório do escritor. Durante anos, décadas, as pessoas passaram ali pela frente daquela casa como numa romaria, na esperança de ver um naco que fosse do cotidiano do seu ilustre morador, sua intimidade, sua presença física. Parece que, quanto menos afeito ao espetáculo da celebridade, mais o artista se vê alvo da curiosidade alheia. Muitos saíram pelo mundo jurando que viram um Fusca 0 km que nunca rodou na garagem do mestre dos contos; que o flagraram assistindo jogo de futebol; que o viram brincando com o cão no espaçoso terreno dos fundos.

A atávica aversão de Dalton Trevisan aos salamaleques ecoa pelo mundo todo. Em 2012, quando foi contemplado com o Prêmio Camões, o mais distintivo da língua portuguesa, o autor enviou (por fax) um bilhete a sua editora, pelas mãos de um raro amigo, o livreiro Aramis Chain, aceitando o prêmio (mas não a ponto de ir pessoalmente recebê-lo) e com um pequeno recado aos seus premiadores: “O melhor conto você escreve com a tua mão torta, teu olho vesgo, teu coração danado.”. A mão torta de Dalton Trevisan (e seus personagens sincopados, as extremas-unções amorosas amparadas em diálogos crus e ligeiros) lhe valeu alguns dos mais cobiçados prêmios literários, como o Machado de Assis, quatro Jabutis, o APCA e o Portugal Telecom.

Sua imantada presença na cena literária foi relembrada em um saboroso texto da escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho, que esteve em Curitiba em busca de algumas emanações da personalidade e da obra do artista. “Quem já viu um vampiro? Eu não vim à caça, nem me ocorre vê-lo, só andar no seu rasto por Curitiba”, escreveu a autora portuguesa. Ela se deteve por algum tempo em torno da casa da Amintas de Barros, como quase todo fã de literatura e de suas criaturas míticas. “Não há campainha nem batente, ainda que eu quisesse bater. Contorno a casa. Cacos de vidro e velho arame farpado no muro, uma porta de garagem”.

“Não me acho pessoa difícil, tanto assim que esbarro diariamente comigo mesmo em todas as esquinas de Curitiba”, disse o autor em uma rara entrevista em 1968. “Não tenho nada a dizer fora de meus livros. Só a obra tem importância, o autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista”.

O discreto contista morou ali naquela casa quase toda sua longa vida, mas se viu obrigado a sair de sua mítica residência em 2022, , segundo contam reportagens de publicações locais, após enfrentar uma das decorrências da escalada da violência urbana – um sujeito armado teria entrado na residência para assaltar e aterrorizou o decano autor. Há quem relate que ele foi até agredido. Curitiba enfrenta uma explosão de casos de violência, com 465 homicídios registrados em 2 anos. Já avançado na idade, Dalton julgou melhor ir para um lugar mais seguro, um apartamento na Alameda Dr. Muricy, conforme relatos.

Mas aí é que foi destampada a boataria. Uma onda de disse-me-disse começou a dar conta de que a casa deixada vazia pelo escritor, agora comprada por uma incorporadora, seria demolida implacavelmente para dar lugar a um condomínio, uma contingência muito comum nas grandes cidades brasileiras. Foi então que o valor simbólico da residência do escritor brasileiro vivo mais festejado internacionalmente começou a bater na consciência dos cidadãos.

A reportagem recebeu a informação de que, ao contrário de incorporadores vorazes, a casa teria sido adquirida por uma artista plástica de renome, Eliane Prolik (que participou da 19ª Bienal de São Paulo, em 1987), já com o intuito de garantir que não sofresse intervenções. Contatada, Eliane, que, como Dalton, é avessa ao culto à personalidade, não confirmou a compra da casa, mas declarou, resoluta e brevíssima: “O que eu sei é que não vai ser demolida nunca!”.

O próprio escritor, preocupado com as repercussões de tal sorte de reportagem que este repórter estaria engendrando (chegaram a espalhar que ele próprio teria demolido seu escritório na casa), fez chegar-nos uma mensagem, por intermédio de uma rede de amigos, para garantir que a casa não será absolutamente demolida. A preocupação mostra que Dalton (apesar da fama de recluso emparelhar com a do finado autor norte-americano J.D. Salinger, de O Apanhador no Campo de Centeio) estima de verdade seu velho casarão, e que sabe de seu valor para além dos números e da própria misantropia.

O órgão do patrimônio histórico de Curitiba, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), reafirmou a ausência de riscos para a Casa do Vampiro. “A edificação localizada à Rua Ubaldino do Amaral, 487, esquina com rua Amintas de Barros, é cadastrada como Unidade de Interesse de Preservação (UIP) pelo município”, nos informou o Ippuc, em nota. O instituto também confirmou que foi aprovada pela sua Câmara Técnica do Patrimônio Cultural Edificado e Paisagem Urbana (CAPC) uma proposta de construção de uma habitação coletiva no terreno do entorno, mas que deverá respeitar a casa e sua área de ambiência. “A UIP deverá ser restaurada e fará parte do empreendimento”, informou a nota.

Há informações, não oficiais, de que a casa já está destinada a abrigar um novo equipamento cultural da cidade, o que projeta um destino agradável para o imóvel, que finalmente poderá ser visitado pelos curiosos de todos os quadrantes que sempre sonharam palmilhar os passos íntimos do Vampiro de Curitiba (apelido que Dalton passou a carregar a partir da publicação do livro O Vampiro de Curitiba, de 1965, e devido ao seu próprio comportamento escorregadio). Evidentemente, nem todos estão totalmente convencidos. O historiador Dennison de Oliveira, professor da Universidade Federal do Paraná, acha que a proteção do cadastro dos imóveis como UIP (Unidade de Interesse de Preservação) tem “eficácia limitada” e não garante que a residência esteja protegida. Em um artigo, ele cita três casos que considera malogrados na cidade: a casa do indigenista e documentarista Vladimir Kozák, a casa do escritor e historiador David Carneiro e a casa do escultor e artista plástico Erbo Stenzel. Uma perdeu as características originais, outra virou uma loja de souvenires e a última queimou em um incêndio.

O caso da casa de Dalton Trevisan parece diferente por dois motivos: o primeiro é que o próprio autor parece envolvido no seu destino. A segunda, que há um empenho extra de toda uma comunidade em não permitir que sua história seja apagada. Nas redes sociais, o grupo Antigamente em Curitiba resgatou fotos da casa lá nos anos 1920 e 1930, tempo em que Alois Graf, o seu primeiro morador, costumava reunir a família debaixo de uma árvore na frente da casa para tirar fotografias. Moradores falam em erguer ali uma biblioteca especializada na literatura curitibana, juntar Jamil Snege, Paulo Leminski, Dalton e os outros.

Não se põe abaixo a casa de um homem que não tem nem reflexo no espelho, diria um leitor mais supersticioso e debochado. Nem com cem camponeses com forcados e tochas à sua porta, nem com mil Nelsinhos corretores imobiliários.

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