O geógrafo Milton Santos acreditou que o mundo não é constituído somente do que já está feito, mas também do que pode ser feito. Essa convicção no potencial revolucionário da mudança o tornou um dos intelectuais brasileiros mais sólidos do século 20 (Milton morreu em 2001) em qualquer fronteira geográfica do Planeta.

Nascido em Brotas de Macaúbas, no interior da Bahia, em 3 de maio de 1926, crescendo na mesma Ilhéus de Jorge Amado (na qual foi professor ginasial entre 1948 e 1953), Milton Santos teve, desde os anos 1960, sua importância cultural e filosófica tratada nos limites estritos da academia, que o reconheceu como um pensador de excelência e cientista extraordinário (no Exterior, primeiramente). Mas agora será possível enxergar a dimensão de sua contribuição à ciência e à cultura em outra dimensão, a humana. O Itaú Cultural acaba de abrir a Ocupação Milton Santos em sua sede na Avenida Paulista, a primeira dedicada à personalidade, carreira e pensamento do geógrafo brasileiro.

Milton Santos defendeu a extensão do conceito de geografia às questões de cidadania, território, migrações, poder. Por conta dessa clareza de ideias, que possibilitam a identificação imediata da opressão (e suas origens), Milton foi eleito inimigo do governo militar em sua primeira hora, sendo preso e exilado a partir de 1964. “A mudança histórica provirá de um movimento de baixo para cima, tendo como atores principais os países subdesenvolvidos e não os países ricos; os deserdados e os pobres e não os opulentos; o indivíduo liberado partícipe das novas massas, e não o homem acorrentado; o pensamento livre e não o discurso único”.

Com um doutorado pela Universidade de Estrasburgo, na França, professor nas Universidades de Toulouse e Paris, Milton voltou ao Brasil em 1977, mas ainda demorou para ser absorvido pela academia com o relevo que merecia – só foi admitido como professor universitário em 1983, na Universidade Federal da Bahia. Hoje, suas ideias vivem talvez o momento de maior influência nas universidades, seus livros se tornaram referenciais e o pioneirismo o projeta como um pensador do mundo. A cultura popular exerce sua qualidade do discurso dos ‘de baixo’, pondo em relevo o cotidiano dos pobres, das minorias, dos excluídos”, escreveu.

Homem negro de profunda convicção das origens e da inserção numa sociedade racista, amigo de Abdias do Nascimento, Milton tem seu posicionamento social exposto na mostra, com os debates e os colóquios dos quais participou debatendo o racismo e a segregação. Mas não era um militante tradicional. “Mas o que é que eu posso dizer? Porque eu não sou propriamente um especialista na questão negra, não tenho estudos sistemáticos sobre o problema da negritude no Brasil ou em qualquer lugar… Então, o que eu vou trazer é mais um depoimento de um negro, que viveu sempre cada vez mais sabendo o que é ser um negro”, escreveu, em As exclusões da globalização: pobres e negros, de 1998.

A 59ª Ocupação Itaú, que destaca a vida e a obra de Milton Santos, tem curadoria coletiva e consultoria de Flávia Grimm e Manoel Lemes, com projeto expográfico de Francine Moura e Davi Brischi.  Grande parte do material exposto vem da coleção Milton Santos pertencente ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP, mas também há objetos cedidos pela família – poucos, como a mala de papelão com que Milton viajou a vida toda, dividida em compartimentos, e com a qual ele atravessou os 14 anos de exílio.

A exposição destaca exemplares dos mais de 40 livros de Milton, com destaque para o primeiro, um original de Zona do Cacau, de 1955, publicado pela Imprensa Oficial da Bahia (e esgotado há quase 70 anos), que examina as características e as dinâmicas da produção cacaueira do sul da Bahia, enfatizando o povoamento, as técnicas de plantio, o habitat rural, a hierarquia de cidades, os transportes, o comércio e a industrialização em torno da cultura do cacau na região. Além dos livros, há a exposição do método: parte dos manuscritos do geógrafo estão na Ocupação, além de textos datilografados por ele.

Em video, além de importantes depoimentos do próprio Milton a programas de TV e durante simpósios, está uma conversa com sua viúva, a francesa Marie-Hélène Tiercelin dos Santos, e uma performance do poeta Sérgio Vaz, da Cooperifa, o poema Miltongrafia, gravado durante um dos famosos saraus na periferia de São Paulo, em Piraporinha, Zona Sul.

Milton Santos recebeu, em 1994, o Prêmio Vautrin Lud, o mais destacado prêmio de geografia do mundo, em Saint-Dié-Des-Vosges, na França. “Exclusão e dívida social aparecem como algo fixo, imutável, quando, como qualquer outra ordem, pode ser substituída por uma ordem mais humana”, escreveu o intelectual, no livro Por uma outra Globalização. Seu trabalho o fez lecionar ainda na Universidade de São Paulo e também em Toronto e Caracas, o tornou pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, e consultor das Nações Unidas, da OEA e da Organização Internacional do Trabalho. Acumulou 20 títulos honoris causa de universidades de diversos países. “Há um turbilhão, há uma efervescência de baixo que a gente não está podendo captar completamente, integralmente, mas que há, e que vai, um dia ou outro, confluir com a produção de ideias para forçar um novo caminho”, disse o geógrafo, em entrevista ao programa de TV Roda Viva, também recuperado pela exposição.

O geógrafo Milton Santos ainda bebê, em Brotas de Macaúbas, em fotografia do álbum de família
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