Martin Luther King era sedutor com as mulheres, um macho típico do seu tempo (“o homem deveria acompanhar a mulher até em casa”, dizia); era implacável com os racistas, mas tinha medo de morrer como todo mundo e era capaz de implorar para não ser assassinado numa estrada erma; foi perseguido por extremistas e pelo governo, monitorado pela CIA e pelo FBI (e foi provavelmente assassinado por esses últimos).

Essas informações sobre Luther King transbordam de uma rica biografia desenhada, King, pesquisada e rabiscada durante 18 anos e agora publicada integralmente, e que se baseia em 20 outras biografias e investigações anteriores. Assentado sobre violentas erupções de cor “maculando” uma narrativa simbólica toda em branco e preto, o álbum acompanha a vida de Martin Luther King, mas principalmente usa sua saga para compreender a trajetória das pessoas pretas nos Estados Unidos contemporâneo. Seu autor, Ho Che Anderson, mereceria uma biografia tanto quanto o biografado: canadense naturalizado estadunidense, Ho Che Anderson é filho de um imigrante jamaicano negro de esquerda radical que batizou o filho com prenomes de ídolos políticos (o vietnamita Ho Chi Minh e o argentino Che Guevara). “Vou deixar claro: ele não era anti-brancos, mas era rigorosamente pró-pretos”, disse o cartunista.

King é um dos maiores épicos em quadrinhos publicados nas últimas décadas. Ho Che Anderson tem algumas influências que parecem fáceis de identificar (como os cartunistas modernos Howard Chaykin e Frank Miller), mas tributa também sua arte a pintores como Norman Rockwell e a pioneiros da ilustração como J.C. Leyendecker. O autor sempre disse que trata seu livro como uma “interpretação” da vida de Luther King, mais do que uma reivindicação de suas verdades. “É um rascunho sobre ele, uma ideia. Minha esperança é que seja uma narrativa estimulante o suficiente para inspirar as pessoas a voltar atrás e aprender mais sobre ele por si mesmas”, afirmou.

Desde os casos de racismo contra Claudette Colvin e Rosa Parks (por intermédio desse último, King conseguiu mudar a lei da segregação nos ônibus de Montgomery), passando pelas Viagens da Liberdade (atacadas pela KKK), os protestos pacíficos dos sit-ins, a assunção do black power, dos Panteras Negras, a sombra perene da violência, as conversas de King com os presidentes John F. Kennedy e Lyndon Johnson: o livro se debruça nos avanços dos direitos civis num país que sempre tentou não apenas varrer o problema para baixo do tapete, mas substituí-lo por outro “mais urgente”. Foi o que aconteceu, por exemplo, durante a Guerra Fria, no qual as autoridades tentavam convencer que o contexto da “ameaça comunista” era maior do que o do racismo. Na verdade, é a estratégia até hoje: eleger novas prioridades para postergar a resolução do conflito básico.

A nova tradução discute até as informações consagradas sobre Luther King, como o famoso texto do discurso “Eu Tenho um Sonho” (“I have a dream”), de 28 de agosto de 1963: “Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, cada colina e montanha será nivelada, locais acidentados serão planícies e os locais tortuosos serão retos, e a glória do Senhor será revelada, e tudo que é carne há de ver isso junto”. É um discurso no qual King cita a Bíblia (Isaías 40:4), mas as traduções consagraram a frase “todo vale será levantado”. O novo álbum adotou o texto da Bíblia do rei James, a versão inglesa que Martin Luther King usava, preferindo “exaltado”.

Segundo a revista Publishers Weekly, “Anderson leva os leitores para dentro do cotidiano de King, para dentro de carros, bares, salas de estar… para dentro da história. Ele faz a história palpável. Através de desenhos, King ganha vida”. Basicamente, é isso: Ho Che Anderson coloca a história em movimento, cria dramaturgia para ela e tira do pedestal. Não é uma façanha pequena.

King. De Ho Che Anderson. Veneta Editora. Tradução de Dandara Palankof. 256 páginas, 76 reais.
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