Em 1974, Alceu protagoniza o alegórico filme "A Noite do Espantalho", do compositor Sérgio Ricardo

Próximo de Alceu Valença desde 2009, quando se tornou seu assessor de imprensa, o jornalista carioca Julio Moura aproveitou o acesso ilimitado ao cantor e compositor para construir uma biografia alentada, batizada de Pelas Ruas Que Andei, cujas 592 páginas documentam obsessivamente cada passo da história musical do artista nascido há 77 anos em São Bento do Una, no agreste pernambucano. Ponto de força da trajetória de Alceu Valença, que o texto de Moura deixa evidente, é a obstinação do artista em valorizar e priorizar a musicalidade brasileira e mais especificamente a nordestina, ainda que, paradoxalmente, fosse compreendido inúmeras vezes como um roqueiro.

A imagem de roqueiro rebelde foi fortalecida pela produção experimental e iconoclasta dos anos 1970, consolidada a bordo das guitarras de Paulo Rafael, antes figura de frente da banda de rock udigrúdi pernambucano Ave Sangria. Paulomorreu em 2021, sem jamais desconectar sua música da de Alceu. Como reconstitui o livro, a chegada da família Valença ao Recife foi o momento em que Alceu viveu o primeiro choque entre as raízes populares do interior pernambucano em que foi criado e o sentimento antibrasileiro de todas as gerações de brasileiros dali em diante, que o perseguiria (e a nós) incessantemente até os dias atuais.

“Ninguém no Recife gostava das coisas do Nordeste. A classe média tinha vergonha do baião. Queriam a coisa importada”, Alceu aparece afirmando, numa das muitas declarações nesse sentido coletadas pelo biógrafo. “No Recife, tive que esconder minha cultura rural. Essa cultura que hoje domina a cidade, o coco, o baião, não eram recifenses, eram do interior”, completa já nos anos 2000, em tempo pós-manguebit. Por mais que essa situação tenha evoluído e que ritmos brasileiros se espalhem em inúmeras variáveis pelo Brasil, é incômodo constatar que algo parecido acontece, hoje mesmo, com o piseiro (que sintomaticamente não é citado nenhuma vez por Alceu ou pelo autor do livro).

Mais uma declaração, proferida por Alceu em 1978: “Minha música, apesar de ser uma coisa ligada à raiz, entrou nos ouvidos reacionários como ruído – um dado novo – e nos ouvidos abertos entrou, a princípio, como rock – um dado velho. Ela não foi situada. Eu não faço rock. Eu luto pela música brasileira”. Outra, de 1980: “Meu disco não necessita apelar pro reggae ou disco music. Em nome da antropofagia se fazem muitas picaretagens”. Em 1982, ele fala da geração musical nordestina que representa e expressa com uma pergunta ao jornalista Tarik de Souza a impressão que o Rio de Janeiro, seu domicílio desde 1971, lhe causa: “Será que estamos condenados a ser os palestinos do Brasil?”.

Participando do primeiro Rock in Rio, em 1985, Alceu reclama a ausência de Raul Seixas do festival e interpreta as reverências que recebe dos pop-jazzistas estadunidenses George Benson e Al Jarreau: “Desceram do pedestal para cumprimentar Macunaíma”. Em 1986, autodefine-se: “Não sou filho da bossa nova nem do tropicalismo. A minha música (…) é o Nordeste ligado na corrente, na tomada. O Nordeste moderno”. Em 2003, reage ao ascendente hip-hop: “Outro dia ouvi um cantor falando ‘faço rap porque parece com repente’. Ora, então por que não faz logo um repente?”.

Um dado anedótico dá medida do nacionalismo intransigente de Alceu: o hit maiúsculo “Belle de Jour” (1992), segundo o livro, é fruto de uma confusão valenciana entre a atriz francesa Catherine Deneuve e a atriz inglesa Jacqueline Bisset.

Repleto de curiosidades, Pelas Ruas Que Andei localiza outros artistas musicais na família de Alceu, casos do primo Bubuska, que gravou discos autorais nos anos 1980 e 1990; do tio Nelson Valença, fornecedor de composições forrozeiras para o mestre Luiz Gonzaga nos anos 1970 e co-autor de seu sucesso “O Fole Roncou” (1973); e, antes de todos, os irmãos João e Paulo Valença, co-responsáveis, com Lamartine Babo, pela marchinha carnavalesca “O Teu Cabelo Não Nega” (1932), hoje tornada maldita pelo conteúdo abertamente racista. Pertencente aos domínios do frevo, que Alceu passaria a gravar a partir dos anos 1980, o maestro Nelson Ferreira foi vizinho de rua da família do futuro pupilo em Recife, nos anos 1950.

O mestre Jackson do Pandeiro se rende aos cabeludos Alceu Valença e Geraldo Azevedo, no VII FIC, de 1972 – Foto Sebastião Marinho – Agência O Globo/divulgação

Quanto aos temas do forró, que têm rendido sucessos no período pós-manguebit, em diversos álbuns dedicados ao gênero e em sucessivas apresentações do bloco Bicho Maluco Beleza no carnaval paulistano pós-axé music, Alceu aproximou-se dos cocos de Jackson do Pandeiro antes de cortejar os baiões, xotes e xaxados de Luiz Gonzaga. Jackson, que “detestava cabeludos”, foi cooptado pelo jovem compositor para participar de seu “Papagaio do Futuro“, apresentado no Festival Internacional da Canção de 1972 e até hoje interpretado como um de seus mais potentes rocks (ou forrocks, melhor dizendo). “Gonzaga era asa branca, Jackson era bacurau”, observa Julio Moura, demarcando o caminho cronológico trilhado por Alceu.

Jackson, Alceu e Geraldo apresentam “Papagaio do Futuro” no FIC de 1972

Com Luiz Gonzaga, o processo foi inverso: foi o “rei do baião” que se aproximou, aparecendo especialmente para assistir a um show do aprendiz na cidade do Crato, no Ceará, classificando sua sonoridade como de “uma banda de pífanos elétrica” e prevendo que “80 será a década de Alceu”. Os sucessos de Gonzagão começam a aparecer nos discos de Alceu a partir de Coração Bobo (1980), na antessala da explosão popular com “Tropicana”, “Como Dois Animais” (1982) e “Anunciação” (1983). “Resolvi gravar Luiz Gonzaga porque todo mundo interpreta de forma errada”, ele afirma, nada modesto, em 1980.

Zé Ramalho e Lula Côrtes ladeiam Alceu no Festival Abertura, de 1975, cantando “Vou Danado pra Catende” – foto Mario Luiz Thompson

Equacionando tradição e contemporaneidade desde duas décadas antes do advento do manguebit de Chico Science, Alceu Valença iluminou a modernidade de sua geração, trazendo o som rascante do Ave Sangria para sua banda, incorporando nela os ainda underground Zé Ramalho e Lula Côrtes e contando com backing vocals como Elba Ramalho e Marlui Miranda. Pelas Ruas Que Andei reverencia e torna mais palpáveis as pegadas de Alceu Valença na música popular brasileira.

Alceu Valença – Pelas Ruas Que Andei (Cepe Editora, 592 pág., R$ 70), de Julio Moura

(Leia mais sobre a presença pernambucana na música brasileira aqui.)

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome