Encontros de artistas baianos e pernambucanos agitam o palco do Trapiche Barnabé, em “um Rec-Beat com a cara do Rec-Beat”
Com 28 anos de história, o Rec-Beat volta a cruzar os limites do caldeirão onde eclodiu o movimento mangueBit e chega, neste sábado (21), a Salvador/BA. A programação tem início às 16h30, no Trapiche Barnabé (Av. Jequitaia, 5, Comércio). Os ingressos custam R$ 50,00 (com meia-entrada para o público previsto em lei).
As atrações são Melly, Joyce Alane, Josyara, Martins, Johnny Hooker, Nêssa, Fresh Prince da Bahia, Marley no Beat e DJ 440.
Além da capital pernambucana, ao longo de sua trajetória o Rec-Beat já montou palcos em Fortaleza/CE, Sobral/CE, Caruaru/PE (três vezes) e João Pessoa/PB (duas), além de ter realizado uma edição digital em São Paulo/SP. A capital baiana se soma agora a estas edições extraordinárias.
Ainda não há nomes fechados para o line-up do festival no Recife, mas Antonio Gutierrez, o Gutie, idealizador e produtor do Rec-Beat, garante que “vai seguir essa coisa de ter nomes locais, alguma coisa internacional, mantendo a cara do festival”. Na capital pernambucana, este ano, o Rec-Beat acontece de 18 a 21 de fevereiro (de sábado a terça-feira de carnaval), no Cais da Alfândega, de graça.
Por telefone, Gutie conversou com exclusividade com Farofafá.
ENTREVISTA: GUTIE
ZEMA RIBEIRO – 28 anos, 27 edições de Rec-Beat. Vamos fazer um resumo desta trajetória?
GUTIE – O Rec-Beat acho que pode se dizer que é o mais longevo dos festivais brasileiros. A gente começou num ambiente que era uma cena musical muito forte, o mangueBit, e em pouco tempo a gente já passou a ser um festival de referência, programando a música brasileira, de modo geral, e nos últimos anos, mais de 15 anos, a gente também tem esse olhar para uma produção internacional, mais com o foco afro-ibero-americano. É um dos poucos festivais que fazem isso. O festival é uma referência, como plataforma de lançamentos, um festival que tem um perfil, que acontece durante o carnaval, é um dos poucos festivais gratuitos de grande porte do Brasil. A gente ganhou um perfil de ser um festival democrático, diverso, plural, inclusivo, porque o fato de a gente fazê-lo de forma gratuita, a gente permite o acesso a um segmento de população, de público, que não teria acesso a determinadas atrações que a gente coloca no festival, que de certa forma a gente pode dizer que são nomes transformadores para esse público. Imagina você ter num palco do Rec-Beat Emicida, Criolo ou mesmo uma banda como Bomba Estéreo, da Colômbia. Isso, para esse público, é uma possibilidade de se deparar com uma produção musical impactante e que eles não teriam condições de ver se não fosse ali no Rec-Beat. Então a gente cumpre uma função muito importante, principalmente nesse momento do país, que essa divisão, esse abismo social se acentuou ainda mais. Acho que um festival como o nosso permite essa ponte. Essa é uma das características do festival. Outro lado bom da coisa é essa liberdade curatorial que a gente tem, experienciar desde novos nomes, coisas periféricas, ao mesmo tempo ter sempre algum ícone, algum nome consagrado da nossa música. Já tivemos aqui desde Luiz Melodia [1951-2017], Erasmo Carlos [1941-2022], Jards Macalé, João Donato, junto com nomes emergentes que fazem o festival formador de público, junto com estes nomes históricos que são também bastante importantes para a formação deste público. Essa liberdade curatorial tem o lado ruim, que é a gente ter que sobreviver e manter o festival sem bilheteria, dependendo exclusivamente de patrocínio. Principalmente saindo agora, que nós tivemos um período terrível de ódio à cultura. Eu acho que a gente pode dizer que é sobrevivente desse inferno e a gente agora retoma. Em 2021 a gente fez uma edição online, em 2022 não fizemos e estamos retomando agora. É um festival que tem isso, essa coisa plural, é a cara do carnaval o Rec-Beat, um ambiente democrático, inclusivo, plural, diverso, acho que o Rec-Beat sintetiza esse conceito, essa ideia de celebração da música.
ZR – A curadoria é sua ou tem uma equipe por trás?
G – É minha, é minha.
ZR – Uma coisa que você destacou foi a questão dos lançamentos. Nesta edição que acontece agora no final de semana em Salvador vai ter lançamento da Josyara e do Johnny Hooker. Eu queria você comentasse um pouco esse line-up, essa programação que está marcando esses encontros de artistas baianos com artistas pernambucanos, que é um intercâmbio muito interessante.
G – Eu falei mais sobre Recife, essa coisa da gratuidade. Salvador, não, Salvador é uma experiência que a gente está fazendo ali, já um pouco diferente. É um dia só e a gente escolheu como fio condutor dessa edição em Salvador uma aproximação da nova cena musical baiana e pernambucana. Porque a música baiana tem uma presença muito forte aqui no Rec-Beat, no Recife, assim como a música do Pará. São cenas muito fortes, junto com Pernambuco eu acho que são as cenas mais fortes do país, que mantêm sempre muita renovação. Então, em Salvador, a gente está fazendo essa aproximação. Nós temos o Johnny Hooker, que está lançando um álbum dele [Orgia, 2022], o álbum mais recente, e a Josyara também [ÀdeusdarÁ, 2022]. Mas nós temos nomes novos. Quando eu falo de plataforma de lançamento é o olhar que a gente tem para nomes emergentes. Por exemplo, nós temos ali, a Melly, lá de Salvador, que é um nome novíssimo, junto com a Joyce Alane, que é outro nome daqui, que vão se apresentar juntas, se encontrando. A gente está chamando de encontros, um artista recebe outro; temos também o Marley no Beat, que é um menino aqui do brega-funk, novo, um cara que está despontando também, que vai estar com o Maurício, que é o dj Fresh Prince. Temos a Nêssa, que também é um nome novíssimo de Salvador, que vai estar com o Johnny Hooker, e o Martins, que está despontando, já tem uma trajetória, inclusive a Daniela Mercury e a Margareth Menezes gravaram agora, recentemente, músicas dele. Esse menino é muito foda. É um nome relativamente novo. Esse line-up de Salvador reflete isso, as duas cenas, o que tem de novidades nessas duas cenas, porque são cenas que têm uma presença muito forte no Rec-Beat.
ZR – Por curiosidade, você tem ouvido coisas do Maranhão? Tem algum nome que você destacaria?
G – Rapaz, do Maranhão, eu fiz agora um projeto em São Paulo com a Enme Paixão. Já tenho amizade aí, não é tão novo, com a Luciana [Simões] e o Alê [Muniz, o duo Criolina], que fazem aí o [Festival] BR-135, mas eu não tenho, atualizado, fora a Enme, nenhum nome que me ocorre.
ZR – Você falou do que a gente viveu ao longo dos últimos quatro anos, desse ataque sistemático à cultura, a destruição das políticas públicas do setor. A gente está muito no começo do ano, muito no começo de um governo que ainda está atrapalhado por esses ataques violentos, terroristas, lá em Brasília. Essas edições do festival, tanto em Salvador quanto em Recife, elas sofreram ainda um pouco com isso, com essa resistência do governo anterior?
G – Nos últimos quatro anos eu simplesmente deixei de fazer projeto para a Rouanet [a lei federal de incentivo à cultura]. Não tinha motivo, era acompanhando os amigos fazendo projetos com muita dificuldade. Então para não me desgastar e também não legitimar o governo [de extrema-direita de Jair Bolsonaro] eu resolvi não inscrever projeto nenhum ali. O de Salvador a gente está fazendo com o FazCultura [o Programa Estadual de Incentivo ao Patrocínio Cultural, da Secretaria de Estado da Cultura da Bahia], que é uma lei de mecenato lá de Salvador, que é redução do ICMS [o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços], e lá eu estou com apoio da Oi, Oi Futuro e Devassa. E lá em Salvador tem cobrança de ingressos, a preço popular, meio que faz parte da contrapartida da lei, então eu fiz. Mas na esfera federal, eu desisti de fazer. E aqui a gente está começando, quer dizer, já era para estar tudo pronto, mas está havendo um atraso nas definições, a gente tem uma relação muito próxima com a Secretaria de Cultura [do Estado de Pernambuco], pelo fato de a gente fazer o festival na rua, gratuito, aberto, então a gente precisa dessa conexão com a Secult daqui, que está também um pouco atrasada no processo de montagem do carnaval. Mas espero que agora a gente consiga, tenha um rearranjo nessa área cultural, que estava desmantelada, e que a gente consiga construir relação também com a iniciativa privada, para captar recursos, sabe? E que tenha um ambiente amigável, onde as empresas confiem nos eventos, que apostem nos eventos, que deixe de ser aquela coisa de demonização da cultura, que a gente vinha vivendo, que afastou bastante os patrocinadores também, dificultou muito até para quem queria patrocinar.
ZR – O que você achou da indicação de Silvério Pessoa [cantor, compositor, ator e Doutor em Ciências da Religião] para a secretaria de Cultura de Pernambuco?
G – Silvério já é um velho amigo. Conheço há um tempo, é um cara muito sério, tem uma trajetória, além da música tem uma atuação no campo da pesquisa, então não é só um artista ocupando uma função. É um artista que também tem uma preocupação relacionada à pesquisa, a um trabalho acadêmico também, então isso ajuda muito no entendimento da atividade cultural de modo geral. É um nome que me agrada, ele estar aqui. Agora, você sabe, tudo é muito formação de equipe, montagem de equipe. Um nome só, às vezes agrega, até pela trajetória dele, ele agrega mesmo, para a pasta que ele está ocupando. Tem que ter uma política governamental também solidária com a cultura. O Palácio do Campo das Princesas [sede do poder executivo pernambucano] tem que proporcionar a Silvério um espaço, um incentivo para que ele trabalhe. Acho que ele vai refletir muito também a orientação da governadora [Raquel Lyra, do PSDB], mas eu estou, enfim, nem parei ainda para falar com ele, ainda não tivemos tempo para bater um papo, trocar uma ideia e ver como ele está pensando. O secretário executivo dele também é um menino que vem de Caruaru, que é daqui, que também é um estudioso, que é o [jornalista] Léo Salazar, é um cara bem atuante, já tem livros sobre gestão na área da música, ou seja, é um pessoal preparado. Agora vamos ver qual vai ser a política de um modo geral para a Cultura, da governadora que está assumindo.
ZR – A gente pode tratar o Rec-Beat como uma grife entre os festivais, já tem quase 30 anos de estrada, de colocar o bloco na rua. Como é que são estabelecidas estas parcerias para que ele aconteça fora do Recife? Por exemplo, se São Luís quisesse sediar uma edição do Rec-Beat, qual seria o caminho?
G – É uma coisa muito delicada. Como o Rec-Beat tem um conceito, é uma marca, como você disse, então ir para outra cidade requer muito cuidado para que você mantenha a essência. Em todos os casos eu estive à frente, então a gente identifica parceiros na cidade, tem que ter uma afinidade, lógico, com esses parceiros, profissional, de relação, e a gente constrói, pilota essa adaptação para a cidade, da versão do festival. A curadoria, a gestão, administração, comunicação, fica tudo na mão da gente. Em Salvador está sendo super legal, as meninas lá da Baluarte [parceira local do evento em Salvador], nosso parceiro, experientes, legal, entende, a gente tem tido uma relação muito bacana na produção, bem fluida. Mas assim, toda decisão, a coordenação do festival, orientação, parte da gente. A gente não abre mão desse controle, quando a gente faz fora.
ZR – Quer dizer, é uma grife, mas não é uma franquia [risos]. Acho que você tem toda razão, isso ajuda a preservar também. Um pouco dessa força, dessa importância que o festival ganhou, tem a ver com isso também, com esse controle.
G – É, eu não vou deixar o cara… para você ter uma ideia, a gente foi, para escolher lugar em Salvador, eu fui para lá, fiquei uma semana, eu e minha sócia, conversamos com vários lugares para chegar no ideal, amanhã [dia 17 de janeiro] a gente já está indo para lá, acompanhar tudo, montagem. É assim: a ideia é fazer um Rec-Beat com a cara do Rec-Beat.