Cena do filme acriano Noites Alienígenas, do diretor Sérgio de Carvalho

O resultado do primeiro edital da Agência Nacional de Cinema (Ancine) no ano de 2023 conseguiu um feito inédito: colocou em pé de guerra contra a agência praticamente todo o cinema independente nacional. A chamada pública para Novos Realizadores, que recebeu 519 propostas audiovisuais de todo o País, simplesmente decretou que nenhum projeto da Região Norte, que teve 40 inscritos, é merecedor de um naco do investimento total de 100 milhões de reais do edital. Para piorar, a escolha dos projetos na Região Sul (que englobou Minas Gerais e Espírito Santo) deu preferência aos projetos de Minas Gerais (7 selecionados), enquanto do Rio Grande do Sul foram apenas 2 escolhidos, mais 1 do Paraná e 1 do Espírito Santo.

A negligência para com a Região Norte, que não foi contemplada nem pela cota regional, chega a ser acintosa por conta da circunstância. Atuamente, é um dos pólos audiovisuais de maior vitalidade no País, quebrando fronteiras e tabus. Há um novo boom em curso no cinema da Amazônia, com dezenas de prêmios internacionais e novos realizadores surgindo. Em agosto do ano passado, durante a 50ª edição do Festival de Cinema de Gramado, o longa-metragem acriano Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho, ganhou cinco prêmios Kikitos, além de uma menção honrosa, tornando-se o primeiro longa-metragem daquele Estado a ganhar os principais prêmios de um dos maiores festivais do País (o filme está nesse momento em cartaz em festival no Estação Net Botafogo, no Rio). O cenário é ebulitivo – o filme O Território, por exemplo, já ganhou uma dúzia de prêmios internacionais e está na corrida pelo Oscar 2023.

“O resultado traz uma violência simbólica terrível. Sensação de desqualificação dos produtores do Norte, zero sensibilidade política dos avaliadores”, disse o cineasta Sérgio de Carvalho. “É difícil de entender, e de acreditar, que nenhum dos projetos do Norte não tivesse qualidade para ser contemplado”. afirmou.

A chamada pública de Novos Realizadores da Ancine tem outros problemas. Os projetos escolhidos para receber valores de até 2 milhões (e que agora serão contratados pelo BRDE, Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul) foram selecionados, em grande parte, por pareceristas voluntários, situação criada pela falta de planejamento da agência – e mesmo os pareceristas internos da instituição, remunerados, não tiveram o nome divulgado, denotando falta de transparência. A Ancine, que passou por um período de paralisação deliberada de sua atividade durante o governo de Jair Bolsonaro (que, desde 2018, reduziu em um terço os investimentos no cinema), tenta mostrar serviço apressadamente para se adequar aos paradigmas do novo governo. Só nas últimas semanas, manteve mais reuniões com produtores do que nos últimos 4 anos. Mas fontes internas da agência informam que a pressa tornou caótico o lançamento dos editais, com servidores sobrecarregados por trabalharem num ritmo acima da capacidade operacional da agência.

Ao excluir uma região inteira de um edital público, a Ancine, automaticamente, também exclui a possibilidade de o público ter acesso aos filmes dessa região futuramente. O controle da agência segue sendo o que foi estabelecido durante o governo Bolsonaro, com três diretores (incluindo o diretor presidente, Alex Braga) tendo sido indicados pelo ex-presidente e sabatinados pelo Senado. Isso engessa a possibilidade de mudança em sua condução – atualmente, só há uma vaga para compor a diretoria colegiada, mas o voto solitário de um nome indicado por Lula seria inócuo nas decisões. Há ainda a possibilidade jurídica de ser questionada a presença na diretoria do diretor substituto Mauro Gonçalves, cuja legalidade da indicação é colocada em xeque. Com as exonerações no Iphan, na Funarte e no Ibram, a Ancine persiste sendo o último reduto da guerra cultural intocado no novo governo.

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