A direção da Agência Nacional de Cinema (Ancine) exonerou nesta manhã de terça-feira, 9, o advogado Mauro Gonçalves de Souza do posto de Diretor Substituto da Ancine. Mauro Gonçalves de Souza tinha sido nomeado por Jair Bolsonaro em maio de 2021 e, além de provir da cota política do Centrão do Congresso Nacional, representou os interesses do antigo governo na agência do audiovisual. Chegou a ser diretor presidente substituto da agência na vacância de Alex Braga Muniz, período em que votou pela suspensão de financiamento a um documentário sobre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, O Presidente Improvável. Essa censura foi suspensa posteriormente.

Naquela ocasião, em seu voto pela censura ao filme de FHC, Mauro Gonçalves chegou a mencionar em ata pública a participação do ex-presidente no programa de Pedro Bial, em 18 de maio de 2021 (da qual disse que “sobeja conteúdo político”). “Ora, se o Supremo Tribunal Federal já declarou a inconstitucionalidade de leis que autorizavam a mera denominação de logradouros públicos com nomes de pessoas vivas, por vulneração do princípio de impessoalidade, me parece, sim, muito mais grave, e pelas mesmas razões, aprovar projeto com conteúdo político na obra em que se homenageia político vivo e ainda em atividade”, argumentou, em seu voto.

Antes da Ancine, Mauro Gonçalves tinha sido assessor parlamentar do deputado bolsonarista Philippe Poubel, do PSL do Rio de Janeiro. Com ligações com as milícias, Poubel invadiu um hospital de campanha em São Gonçalo, em janeiro de 2020, armado. Nesta terça-feira, 9, também foi exonerado Rodrigo Moraes, assessor de Mauro.

CONCENTRAÇÃO

A exoneração de Mauro Gonçalves pode levar a pensar que a Ancine passa por um processo de redemocratização, mas não é bem assim. Há informações que dão conta de que Gonçalves sai para se dedicar a outra atividade. E os servidores ligados ao antigo regime bolsonarista (militares e indicações políticas) seguem fortes na atual composição da agência, assim como as práticas prosseguem semelhantes. Um indicativo dessa dessintonia com as novas orientações democráticas surgiu na manhã dessa segunda-feira, 8 de maio, quando a agência publicou um gráfico em seu site mostrando a distribuição dos projetos contemplados por editais segundo as regiões e Estados do País. O gráfico (que ilustra essa página) mostra que somente São Paulo e Rio concentram 46% dos projetos financiados por editais, enquanto as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste ficaram com 32%, e as regiões Sul, MG e ES com 21,72%.

Ato contínuo à sua divulgação, o gráfico causou uma saraivada de protestos e comentários em todo o meio audiovisual. “Querida Ancine, pq não publicar por região ou por estado pra td mundo entender melhor?”, perguntou a documentarista e jornalista Victoria Alvares. “RJ e SP são dois estados da mesma região e reúnem mais de 46%. Já os 32% das regiões ‘Norte, Nordeste e Centro-Oeste’ foram divididos entre 19 unidades federativas, né isso?”.

A organização Conne (Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte, Nordeste), sediada em Fortaleza, Ceará, divulgou ontem mesmo um manifesto no qual aborda o tema e solicita a intervenção do Ministério da Cultura na questão. “A CONNE não defende privilégios para as produtoras e profissionais do Centro-Oeste, do Norte e do Nordeste. Defende um audiovisual verdadeiramente NACIONAL, inclusivo, diverso, com espaço para empresas de todos os tamanhos, de todos os perfis e de todos os lugares – uma visão que deveria ser defendida por todos os agentes que acreditam no progresso, e não apenas na manutenção do status quo”, diz o texto. A Conne passou a integrar, desde o dia 29 de março, a Câmara Técnica Setorial das Entidades Representativas da Produção Brasileira Independente.

LEIA A ÍNTEGRA DO MANIFESTO DA CONNE:

DIVERSIDADE: O JOIO E O TRIGO


Manifesto por um Audiovisual Efetivamente Brasileiro

Ninguém em tese é contra a diversidade.
Mesmo diante de todas as ameaças à democracia no mundo nos últimos anos, a ideia da diversidade, como valor universal e central de uma sociedade democrática, seguiu ganhando força. Não importa do que falemos – se de raça, gênero, orientação sexual, origem geográfica, religião, ideias ou formas de pensar -, um mundo onde toda diversidade tem espaço para se expressar é melhor do que um mundo menos diverso.
Por isso, o discurso de defesa da diversidade ocupa cada vez mais lugares e ganha espaço na agenda das instituições. Ele está na boca dos políticos e dos CEOs de corporações, aparece nas cartas de valores das grandes empresas e se incorpora como princípio a leis importantes. Ele fez parte das promessas de campanha do presidente Lula e está cotidianamente nas falas da ministra Margareth Menezes.

No audiovisual não é diferente. “Diversidade” é a palavra da vez nos discursos dos grandes estúdios, dos canais de TV e das plataformas de streaming. Quatro anos de bolsonarismo serviram para legitimar a saída do armário de todo tipo de opinião retrógrada e preconceituosa. Aparentemente, no audiovisual, entretanto, é só com a recente mudança de governo e a perspectiva de retomada de uma política de fato para o setor, que as forças do atraso começam a mostrar sua cara, aquelas para quem “diversidade” é apenas uma palavra bonita para decorar sites e apresentações de Powerpoint.

A Ancine lançou há pouco os primeiros editais do Fundo Setorial do Audiovisual em 2023. As chamadas públicas para a produção de cinema e para a produção de cinema via distribuidora deixam clara a visão da parte dos agentes de mercado que efetivamente se beneficiará dos recursos públicos por elas disponibilizados: eles não acreditam em diversidade em nenhum sentido. Em causa própria, desejam um mercado audiovisual cada vez mais concentrado em poucas empresas e regido por cinco ou seis CEOs homens brancos e sudestinos. Enquanto utilizam recursos públicos, seguem repetindo a falácia de que geram lucro e retorno ao ecossistema de fomento à produção.

Essa visão encontrou expressão cristalina e sem modos no recente ataque digital desferido contra uma das produtoras de fora do eixo Rio-São Paulo indicadas pela Ancine para a composição de sua Câmara Técnica de Produção. Em um debate online no âmbito dessa Câmara Técnica, diante do questionamento aos critérios dos editais de cinema recém-lançados, o CEO de uma grande distribuidora integrante da mesma Câmara Técnica, não podendo dizer com todas as palavras que acha legítimos esses editais concentradores e que darão expressão a poucas vozes, partiu para a arrogância e o ataque pessoal, utilizando sua posição de protagonismo e pressão empresarial numa clara tentativa de silenciamento de uma voz dissonante. Isso levou essa profissional, para se preservar em termos éticos e empresariais, a sair do grupo de debates e da Câmara, que deveria ser representativa e acolher toda a diversidade de pontos de vista e opinião da produção nacional.

Além de manifestar nossa solidariedade à colega atacada, cabe enfatizar que o ocorrido deixa evidente que as regras para esses editais não foram escolhidas ao acaso, por inércia ou em razão da falta de competência. Elas são reflexo da visão claramente manifesta no ataque desferido: para eles, diversidade é apenas uma palavra bonita.
De seu lado, a CONNE acredita em algo diferente. Ninguém quer o fim das grandes empresas do setor. Elas são elos fundamentais da cadeia produtiva. A continuidade e o acentuamento da concentração econômica e geográfica, entretanto, não são benéficos e contrariam princípios econômicos e civilizatórios básicos. E é hipócrita fazer discurso em defesa da diversidade, enquanto se trabalha pela concentração econômica. Simples assim.

Queremos mais agentes se beneficiando das políticas e dos recursos públicos para o audiovisual, para que mais vozes e mais narrativas possam ter espaço e ganhar vida. O audiovisual depende dessas novas vozes e da diversidade crescente de narrativas para continuar existindo, pois a reinvenção e a inovação são sua própria razão de ser.

É salutar, de certa forma, que o momento permita separar o joio do trigo, explicitando a distância entre palavras e ações de parte do nosso setor. Do nosso lado, seguiremos denunciando a hipocrisia.

A CONNE não defende privilégios para as produtoras e profissionais do Centro-Oeste, do Norte e do Nordeste. Defende um audiovisual verdadeiramente NACIONAL, inclusivo, diverso, com espaço para empresas de todos os tamanhos, de todos os perfis e de todos os lugares – uma visão que deveria ser defendida por todos os agentes que acreditam no progresso, e não apenas na manutenção do status quo.

Conclamamos, nesse sentido, ao Ministério da Cultura, que dê consequências à visão que, sabemos, efetivamente pauta o entendimento deste governo em relação à cultura e ao audiovisual. É preciso, de forma urgente, revisar os critérios de utilização dos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual e iniciar a estruturação de uma política pública efetivamente ancorada na ideia de diversidade.

Brasil, 8 de maio de 2023

Acima, o agora ex-diretor da Ancine, Mauro Gonçalves de Souza

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