Estagnada, a troca de direção na Agência Nacional de Cinema (Ancine) no novo governo Lula promete trazer mais desafios do que somente a indecisão para indicar um novo nome na composição da diretoria colegiada da agência. O balanço que se faz das ações e das prioridades da atual diretoria sob o bolsonarismo vai causar mais do que perplexidade. Por exemplo: somente nos últimos 2 anos, a diretoria destinou mais de 800 milhões de reais para auxiliar grandes redes exibidoras de cinema, em uma ação carente de transparência e clareza de critérios.
Enquanto o Ponto Cine de Guadalupe, na Zona Norte do Rio, a sala que mais exibe filmes nacionais no País, permaneceu fechada nos últimos anos por falta de apoio de políticas públicas, a Ancine aprovou verbas, inclusive dentro de programas de socorro ao pequeno exibidor, para ajudar complexos exibidores faraônicos ou muito bem estabelecidos em áreas ricas das grandes cidades, como o Kinoplex Leblon, e outros politicamente interessantes para o poder instituído. É o caso da rede Cine Gracher, de Santa Catarina, que recebeu 3 milhões de reais somente da Linha de Projetos de Infraestrutura da Ancine (via Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul, o BRDE). O detalhe: a Rede Cine Gracher, que possui 30 salas de cinema, fica dentro da cadeia de lojas Havan, de Luciano Hang, notório e furibundo apoiador de Jair Bolsonaro enquanto este esteve na presidência.
A atual diretoria da Ancine, capitaneada por Alex Braga Muniz, mudou até mesmo as regras de apoio do Programa Especial de Apoio ao Pequeno Exibidor (PEAPE) para entrada em editais públicos, o que facilitou a destinação ao grupo que opera na Havan para também se beneficiar dessa outra linha de financiamento. Antes, apenas redes com até 20 salas de cinema eram consideradas aptas a receber os recursos dos editais de financiamento (a fundo perdido: ou seja, os recursos não precisam ser reembolsados à Ancine), e a partir de 2020 o critério aumentou para 30 salas. Em agosto de 2020, 9 complexos da Rede Gracher dentro da Havan foram habilitados para receber os recursos, com valores médios de 40 mil reais para cada sala (um total de 397 mil reais, 5% do valor total do edital, de longe a empresa que mais recebeu recursos desse edital, que teoricamente era destinado apenas aos pequenos exibidores).
Não se trata de diminuir a importância da rede de cinemas que opera dentro das lojas Havan, ou da necessidade do apoio – a pandemia minou a atividade de exibição de cinema no mundo todo. Mas há outras linhas de financiamento mais adequadas para grandes shoppings e complexos.
A atenção a uns acaba redundando na desatenção a outras atividades que requerem urgência. Desde 2006, o Ponto Cine de Guadalupe já exibiu cerca de 800 filmes brasileiros para mais de 400 mil pessoas (a única sala do mundo que só exibe filme nacional), privilegiando espectadores que, tradicionalmente, estavam excluídos do acesso à cultura. “O Ponto Cine é um exemplo do que deveria ser feito em todas as cidades do Brasil”, disse o cineasta Cacá Diegues. Mas, do mesmo programa que destinou 397 mil reais para os cinemas da Havan, o Ponto Cine só levou 21 mil reais, o que foi insuficiente para evitar seu fechamento.
A questão da transparência, na política de apoio ao pequeno exibidor da Ancine, é obscura. Há contratos de mais de 10 milhões de reais firmados junto ao BNDES que não constam de nenhum sistema de acompanhamento da Ancine, o que dificulta seu conhecimento público. Não se exibe em lugar algum quanto foi pra cada empresa e para quais projetos foi o dinheiro, que, pela lei, devia ser usado pra descentralizar o parque exibidor e ampliar o estrato social de acesso aos cinemas, como foco nas periferias. Essa política, além de outras, como as da acessibilidade nos cinemas e digitalização de acervos, está sendo questionada por servidores junto ao Ministério Público Federal (MPF).
A questão da gestão da Ancine é complexa. A diretoria colegiada é nomeada pelo presidente da República para um período de 4 a 5 anos no bureau diretivo da agência e os indicados passam por sabatina no Senado Federal. Essa nomeação e a consequente sabatina foram feitas em 2021, portanto o atual diretor presidente tem mandato até 2026. Há somente uma vaga atualmente para completar a diretoria – Bolsonaro chegou a indicar seu então secretário de Cultura, Hélio Ferraz, para a sabatina no Senado, mas isso não ocorreu até o final de dezembro e a indicação deve cair. Mas, mesmo indicando um nome profissional para o cargo (fala-se em Antonia Pellegrino, que também aparece como cotada para a Empresa Brasil de Comunicação), o novo governo deverá se submeter às decisões do colegiado, que tem maioria e a presidência. Há um forte lobby para que se dê a Alex Braga Muniz o álibi de atuação “técnica”, para que seja mantido no cargo, mas o aparelhamento político da agência impede que se tenha expectativa em sua atuação – no final do ano, por exemplo, ignorando a troca de governo, Muniz publicou um novo regimento interno e, alguns dias depois, com base nesse regimento, nomeou um novo Corregedor-Geral para a Ancine. Além de militares e policiais rodoviários federais, a agência já abriga também um Ouvidor-Geral que foi braço-direito do general Walter Braga Netto, candidato a vice de Bolsonaro.