O abismo burocrático que engole o cinema

FAROFAFÁ examina um caso exemplar que demonstra as tramas de má vontade, incompetência e gestão farsesca que mina o vigor cultural do País

0
903
Camila Pitanga em cena do filme "Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios"

A Agência Nacional de Cinema (Ancine) notificou nesta sexta-feira, 23, véspera da véspera de Natal, a produtora Drama Filmes Ltda para apresentar, em 120 dias, todas as notas fiscais e comprovantes de despesas de um projeto realizado há 12 anos – o filme Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, dirigido por Beto Brant e Renato Ciasca, com Zé Carlos Machado e Camila Pitanga. Caso não apresente as notas fiscais da produção, que teve início há 15 anos, a notificação informa que a empresa Drama Filmes será incluída como inadimplente na Ancine, além de ter instaurada uma Tomada de Contas Especial no Tribunal de Contas.

O caso do filme da Drama Filmes não é único e particular na Ancine, mas é exemplar e, por intermédio dele, é possível examinar a malha burocrática em que se envolvem os projetos audiovisuais financiados pelo poder público no País. Nossa reportagem se dispõe a enumerar aqui os problemas que decorrem desse tipo de ação.

Para começar, sobre a exigência que parece nova, a de exigir a digitalização de documentos, é preciso dizer: a Ancine já reunia condições, na época de realização do projeto, de pedir ao proponente as notas fiscais e os comprovantes digitalizados. Há mais de uma década isso já é corrente. Um dos problemas cruciais da agência federal é que ela nunca investiu em Tecnologia da Informação (TI) adequadamente, apesar de possuir uma Gerência de TI – mas fez uso do cargo politicamente, no que atrasou a modernização da instituição. A Ancine, até hoje, realiza análises complexas em planilhas Excel, com tabela dinâmica e precisando converter em ODS (Open Document) para salvar no sistema.

O atual Superintendente de Prestação de Contas da Ancine, Eduardo Andrade Cavalcanti Albuquerque, é um militar (Capitão de Mar e Guerra), e sua atuação nesses casos, que pode ser erroneamente tida como rigorosa, na verdade resulta apenas estéril. Muitas prefeituras e governos estaduais já possuem sistemas de digitalização de documentos há mais de uma década – é o caso, por exemplo, da Prefeitura do Rio de Janeiro. Se tivesse sido adequadamente implantado na Ancine, o sistema teria permitido que o desenvolvimento dos projetos fosse acompanhado eletronicamente, em tempo real, eliminando gasto com pessoal.

O outro ponto crucial é que o próprio Tribunal de Contas da União (TCU) estabeleceu agora como de 5 anos o prazo para prescrição das contas de projetos financiados pelo poder público. Essa decisão faz com que todo o esforço de exame de contas, prestação de contas e depois de Tomada de Contas Especial seja apenas gasto inócuo de dinheiro público – ao chegar no TCU, a prestação de contas anterior a 5 anos será, a partir de agora, arquivada.

A dessintonia da Ancine com as novas tecnologias não é nova, vem de muito tempo. O problema é que agora já começa a provocar insegurança jurídica – se a prescrição determinada pelo TCU é de 5 anos, o que leva sua direção a notificar projetos de décadas atrás. Sem operar mudanças urgentes na sua área de Tecnologia da Informação, para melhorar o acompanhamento  e as rotinas procedimentais, a Ancine não vai dar conta nem de acompanhar o que o TCU determina, o prazo de 5 anos para a prescrição. Isso acontece porque a capacidade da agência de analisar contas não chega atualmente a 150 contas por ano. Mas, todos os anos, as produtoras entram com mais projetos novos do que esse número nos financiamentos de editais e do Fundo Setorial do Audiovisual. São mais de 200 projetos anuais, envolvendo cinema, televisão e streaming, e o que entra na Ancine supera o que pode ser analisado.

Outro agravante é que um projeto de obra audiovisual pode ter mais de um processo na Ancine (alguns, inclusive, chegam a ter quatro ou cinco). E as análises são por processo, não por obra audiovisual. O caso do filme da Drama Filmes, por exemplo, está na rubrica PAQ 2008 (Prêmio Adicional de Qualidade), que é, obrigatoriamente, usado para financiar o desenvolvimento do filme. Não é nem sequer um dos processos para financiar a produção da obra.

Assim, o filme de Beto Brant foi instado a apresentar notas fiscais de um projeto de desenvolvimento de 2008; o lançamento da obra foi em 2012; e somente no final de 2022 a Ancine vem exigir as notas. Dessa forma, qualquer produtora se vê obrigada a manter uma brigada burocrática para lidar com prestações de contas, sob o risco iminente de, a qualquer momento, a Ancine pedir algo que já poderia ter sido checado, em tempo real, com um sistema de acompanhamento eletrônico do desenvolvimento da obra.

Atualmente, a Agência Nacional de Cinema possui um passivo de aproximadamente 5 mil processos (e não de 5 mil obras, pois a maioria das obras possui mais de um processo). Se admitirmos uma média de dois processos por obra, numa estimativa conservadora, o número de obras no passivo audiovisual pode chegar a 2.500 obras.

Outra questão é que cada mecanismo de fomento possui uma legislação própria, e cada processo de cada obra é analisado por servidores diferentes, o que acaba prejudicando uma análise única e eficaz. Muitas vezes, um dos processos é analisado em determinado ano, o outro em outro ano diferente e o terceiro projeto da mesma obra analisado dois ou três anos após o primeiro o primeiro e um ou dois anos depois do segundo. Isso complica terrivelmente para as produtoras. É um dos nós a serem resolvidos por uma futura administração – uma que não caia no conto fabulístico do “perfil técnico” de diretores de viés político.

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome