O Adeus de Pushkin ao Mar Negro, tela de 1877. de Ivan Konstantinovich Aivazovsky

“E o que pensas de tu mesmo?”, pergunta o jovem oficial cativo Piotr Petróvitch ao sanguinário déspota Pugatchóv. A pergunta, dirigida à queima-roupa a um homem que tem nas mãos não apenas o destino de quem pergunta, mas de centenas de pessoas (e que reivindica um lugar sagrado na vida de uma Nação), é uma das muitas artimanhas de desconstrução dos cânones do poder que o clássico romance A Filha do Capitão, de Aleksandr Púchkin, utiliza em sua trajetória já mítica de relato literário incomparável.

Publicado há 186 anos, A Filha do Capitão retorna às livrarias em uma reedição da Editora 34, recolocando em circulação a tradução famosa que Boris Schnaiderman (1917-2016) publicou em 1949 sob o pseudônimo de Boris Solomonov. No prefácio, o crítico Otto Maria Carpeaux (1900-1978) já adverte que “Púchkin ocupa realmente na literatura russa o mesmo lugar que Goethe ocupa na história da literatura alemã”.

À parte os reconhecimentos literários extensos e já longamente consolidados, é interessante ler A Filha do Capitão à luz da contemporaneidade, dos acontecimentos que marcam não aquela, mas a nossa própria época. Púchkin parece render homenagem explícita ao Quixote de Miguel de Cervantes com os personagens Petróvitch e Savélitch, respectivamente seus Dom Quixote e Sancho Pança, mas há um compromisso com o realismo e uma ausência de ironia que parecem marcar mais o trajeto da dupla por um mundo de assustadora volatilitade ética, moral e de princípios.

Ao jogar um jovem em formação no olho do furacão de um ebulitivo cenário revolucionário, de revoltas, insurreições e traições, Púchkin parece desafiar todas as consciências leitoras a reconhecerem a diversidade e a persistência do espírito humano. Isso já começa pela forma como os dois personagens centrais da narrativa se encontram, em meio a uma tempestade de neve. A um deles, o futuro oferece tudo: o jovem nobre Piotr, poeta diletante, duelista militante, ungido pela sorte. Ao outro, andarilho desenraizado, a nevasca é a própria encarnação da falta de perspectiva no futuro mais próximo.

Entre o mundo dos privilegiados e dos despossuídos, Púshkin demonstra claramente pertencer ao primeiro grupo, mas sua literatura não. É de marcante admiração e reverência suas descrições das habilidades, linguagem, potencialidades e senso de liberdade dos vagabundos, bandidos, desvalidos e do homem do povo.

“Voei pelas hortas, dei bicadas no cânhamo. Uma velha me atirou uma pedra, mas não acertou”, diz o andarilho (do qual ainda não sabemos o nome) ao estalajadeiro de beira de estrada, empunhando códigos reconhecíveis em uma obscura esfera social. Ao que o estalajadeiro, demonstrando reconhecer a linguagem, responde: “Começamos a tocar sino para a missa, mas a mulher do padre não deixa. O padre está de visita, os diabos entram no cemitério”.

O jovem Piotr é enviado pelo pai, rico, para fortalecer seu caráter no serviço militar num lugar ermo. Atraído pelas descobertas da vida boêmia e dos prazeres da sua condição, Petrucha, como é chamado, a princípio deplora o destino que lhe é reservado, perder sua mocidade numa fortaleza inóspita. Mas, ao conhecer Maria Ivânovna, ou Masha, sua disposição muda. O problema é que a conflagração que avança pela região vai colher o casal no meio de uma sanguinária triagem de vítimas e infelizes sobreviventes.

O pequeno romance, publicado meses antes da morte do autor, Púshkin, parece conter um tipo de biópsia de sua própria condição no mundo. O jovem Petrucha se bate em um duelo de honra amorosa da mesma forma que o aristocrata Púchkin o fez em pelo menos 20 situações durante sua vida – acredita-se que o escritor tenha desafiado mais de 20 homens para duelos, além de ter sido desafiado para outros 7 enfrentamentos. O primeiro foi quando tinha apenas 17 anos. O último lhe ceifou a vida, aos 37 anos.

No Dom Quixote, a gangorra narrativa parece oscilar entre o homem e a visão que ele tem de si mesmo. Na Filha do Capitão, o percurso é marcado pela absolvição – Pugatchóv é vilanesco, mas é também visto como fruto de um imenso acaso e oportunismo, e sua guerra é movida principalmente pelo fato de que ele não tem mais como recuar dela. O status quo social é garantido não pela fidelidade das populações, mas pelo interesse circunstancial. A maioria das pessoas está resignada ao seu destino, e o que lhes muda incidentalmente essa disposição são elementos também do arsenal do acaso – o dinheiro, a oferta de conforto, a possibilidade de oprimir em vez de ser oprimido.

Púchkin não usa de artifícios pirotécnicos para descrever a rotina mais virulenta dos combates. É tudo muito contido, prenhe de uma naturalidade corriqueira. Mesmo a vilania é assentada, calma. “Os poetas precisam de auditório como Ivan Kuzmitch da sua garrafa de vodca depois do almoço”, diz um dos primeiros adversários do jovem Piotr, Schwabrin. O fundador da moderna literatura russa não gasta tempo, nessa obra-prima, com descrições exaustivas da paisagem ou da circunstância, mas a curta ambientação revela rigor e intertextualidade: “Meia hora mais tarde, montei meu bom cavalo, enquanto Savélitch subia para o seu pangaré, esquálido e capenga, que lhe fora dado de graça por um habitante da cidade, incapaz de alimentar o animal”. Se esses não são o equivalente ao Rocinante, de Quixote, e ao burro de Sancho Pança, o que mais poderiam ser?

Pugatchóv avança, e enquanto avança, sua crueldade cresce. Embora saiba que seu destino é o mesmo de suas vítimas, ele não se torna menos implacável por isso. “O uso de um impostor pareceu-lhes um bom estratagema. E para isso precisavam apenas de um vagabundo resoluto e audaz, que ainda fosse desconhecido do povo”. Mas, hoje, sabemos bem aqui no Brasil que situação é essa, e que não é somente a impostura a raiz da eventual fragilidade do usurpador. Todo o Estado que triunfa pela exacerbação da barbárie não tem futuro, assinala Púchkin, assim como também não tem futuro o Estado que se assenta sobre uma fidelidade abstrata.

“Passávamos pelos povoados devastados por Pugatchóv e, involuntariamente, tirávamos aos infelizes habitantes aquilo que os bandidos haviam poupado”, lamenta Petrucha. “Eles não sabiam a quem obedecer. O governo deixara de funcionar por toda parte”. É uma conclusão quase anarquista. Mas ela é do resenhista, não está contida em A Filha do Capitão. O que está concentrado nesse pequeno romance gigante é o magnífico equilíbrio entre a literatura e a experiência vital.

A FILHA DO CAPITÃO. De Aleksandr Serguêievitch Púchkin. 62 reais, 207 páginas. Editora 34.

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