"Pedro das Flores", compacto de Helena de Lima e Miltinho (RGE, 1962)

Nos anos 1950, muito antes da chegada do Profeta Gentileza, ele oferecia flores pelas boates do Rio de Janeiro vestindo smoking. Os porteiros das boates já o conheciam de muito tempo e não relutavam em deixá-lo entrar. Ele sabia como abordar as pessoas e o valor do que lhes oferecia (e o fazia à revelia dos versos de Cartola):

“É vivendo com as flores, conversando com elas, que se aprende o que significam. Eu, pela flor que a pessoa escolhe, posso dizer qual é o seu estado de espírito”. Para cada flor diferente escolhida, ele recitava um verso.

Na real, as rosas falam. Mas é preciso ouvi-las. “No princípio, lutei muito. O povo ainda não estava acostumado com as flores. Comecei com os namorados que ficavam sentados nos bancos das praças e jardins”, contou Pedro ao jornal O Globo em 12 de abril de 1960.

Pedro contou que tinha começado a vender flores pela noite ainda molecote, no Cassino da Urca. Era o único na atividade e o chamavam de Moleque das Violetas. Já rapaz, 12 anos depois, apareceu um dia nas portas dos night clubs da noite carioca de black tie, portando uma cestinha de vime com ramalhetes de flores. Virou Pedro das Flores. No começo, disse, as flores vinham do jardim de sua própria casa, onde as cultivava. Mas a demanda aumentou e ele passou a fazer acordos com floriculturas e carregar 200 buquês por noite. Por onde passava, ficava uma fragância boa no ar.

Pedro disse que oferecia as flores por causa de uma promessa que fizera, mas não contou qual era a promessa. Ele não vendia as flores apenas, também costumava presenteá-las. Um dia, contam, encontrou um homem estirado na calçada, inconsciente, e o cobriu de flores. Outra vez, foi atropelado por um sujeito apressado e suas flores ficaram esmagadas. O homem, afobado, até tentou pagar pelas flores, mas Pedro de jeito nenhum aceitou. Ele não aceitava aquele destino por atacado, era um poeta do varejo.

Em 1961, os cantores Helena de Lima, um culto quase secreto da MPB, e o lendário cantor Miltinho, resolveram fazer um disco juntos. Duas vozes fenomenais (Miltinho tinha integrado os grupos vocais Anjos do Inferno, que acompanhara Carmen Miranda nos Estados Unidos, além de Namorados da Luz, Quatro Ases e Um Coringa, Milionários do Ritmo e Cancioneiros do Luar).

Na capa do disco, Pedro entrega um cravo vermelho a Helena de Lima, com a vista de Copacabana ao fundo. O florista é mote e tema do disquinho: o compositor Luiz Antônio (codinome de Antônio de Pádua Vieira da Costa, um compositor de alta patente do Exército) forneceu à dupla de intérpretes a marcha-rancho Pedro das Flores, que entrou no compacto da RGE, lançado em 1962.

“Lá vem o Pedro das Flores/Esquece, amor, as tuas dores”, canta Helena de Lima na primeira parte. Na segunda, entra Miltinho no contraponto, em um dueto memorável. Miltinho foi mestre de alguns novatos, tipo Chico Buarque, João Bosco, Luiz Melodia, João Nogueira, e gravou com Martinho, Elza, Zeca, entre inúmeros outros. No compacto, o acompanhamento é da Orquestra RGE, com arranjos do maestro Ruben Perez.

O disco é quase “flortemático”, já que carrega ali também um clássico, Estão voltando as flores, de Paulo Soledade (paranaense de Paranaguá, um capítulo à parte na música brasileira). Essa já foi cantada de Emilio Santiago a Renato Braz. Helena de Lima, memorável cantora da noite do Rio, morreu em maio deste ano de 2022 no Retiro dos Artistas, um dia antes de completar 96 anos.

Em 1965, o cronista Sergio Bittencourt encontrou Pedro das Flores meio abatido na noite do Rio. Tinha aparecido uma concorrente, chamada Sofia. “Houve reação. Alguns porteiros de boate, fieis a Pedro, impediram sua entrada”, registrou o cronista. Era a concorrência chegando, anotou Bittencourt em sua coluna Rio à Noite. Os tempos mudavam: os enamorados também já não davam mais flores aos seus pares, esse hábito tinha destino traçado, e Pedro sentia tal mudança.

Na construção da memória da cidade, personagens vêm e vão. Muitos permanecem por causa da explosiva notoriedade. Outros esvanecem como a memória do calor do sol numa manhã de inverno. Não se trata de merecimento (nem de autocomiseração face à marcha inexorável do progresso), tudo isso constrói as visões da existência e dos nossos impulsos.

Foi por causa de uma promessa misteriosa que Pedro das Flores, certa vez, resolveu perfumar as noites do Rio.

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