“Era uma época de sentir a experiência – sem efeitos especiais, apenas a vida crua, visceral e sem cortes”, escreve a cantora e compositora estadunidense Debbie Harry, referindo-se aos anos de auge da banda platinada de sua juventude, Blondie, entre 1977 a 1982. Aquele período é destrinchado na autobiografia Face a Face (publicada originalmente em 2019 e, agora, no Brasil), mas em conexão com o presente menos glorioso, desde a reformulação da banda em 1999 até os dias atuais. Em contraste com a opacidade  dos anos 2020, eram tempos “sem selfies voyeurísticas de segunda mão sendo jogadas na internet, sem viciados em celular trocando mensagens sem fim em vez de aproveitar o contato cara a cara, sem a imprensa insistente tentando filmar ou fotografar todos os nossos movimentos e deslizes…”.

A saudade é apenas a saudade, e a queixa da sra. Harry há de parecer jurássica para jovens que nunca viveram sem selfies, downloads, streamings e metaversos. Mas não há como negar que há uma história formidável por trás das palavras da respeitável senhora hoje com 77 anos, que remetem à era da “bolha isolada de depressão econômica em Nova York” da segunda metade dos anos 1970 e do movimento musical e comportamental “do it yourself” que o mundo rotulou como new wave, mas que a autora em pessoa prefere chamar simplesmente de punk. Escrito em colaboração com a jornalista musical Sylvie Simmons, a partir de entrevistas exclusivas e recentes, Face a Face é escrito com elegância e sobriedade, em quilométrica vantagem em relação aos devaneios e egotrips de livros em primeira pessoa de outros mitos do rock (como Neil Young Tina Turner, apenas para ficar em dois exemplos). Aqui, o texto faz jus à história, e vice-versa.

Chris Stein e Debbie Harry, na origem de tudo
Na origem de tudo, Chris Stein e Debbie Harry

Da pimenta fofoqueira que costuma transformar esse tipo de livro em best-seller (o que é o caso de Face a Face), Debbie se desincumbe com discrição, já nas primeiras páginas, ao contar que é filha adotada e que o pai biológico que não chegou a conhecer pertenceu a uma “longa linhagem de encanadores”, ou mais adiante ao falar da separação do marido, o guitarrista Chris Stein (até hoje seu companheiro de banda), após 13 anos de casamento e de parceria musical. A substância que dá vida ao livro, no entanto, vem menos daí que da história com H grande de cultura pop e da auto-interpretação de Debbie sobre tudo que viveu. “A personagem ‘Blondie’ que criei era um pouco andrógina. Nos últimos tempos, penso cada vez mais que eu provavelmente estava retratando algum tipo de criatura transexual”, escreve, salpicando mais um punhado de pimenta ao estabelecer paralelos com o outro gênio feminino de sua juventude – e rival quase inevitável num tempo quase totalmente masculino do rock’n’roll -, Patti Smith.

“Pode-se dizer que o que eu fazia era mais desafiador. Ser uma mulher artística, assertiva e feminina, e não masculina, era um ato de transgressão naquela época”, afirma, depois de observar que “Patti se vestia de maneira mais masculina”. E prossegue: “Eu estava brincando com a ideia de ser uma mulher muito feminina liderando uma banda de rock masculina em um cenário extremamente machão. Nas músicas, dizia coisas que as cantoras não costumavam dizer antes: eu não era submissa e nem implorava para que ele voltasse; estava dando um pé na bunda dele, pondo-o para fora”, escreve, descrevendo, sem precisar ser explicita, a própria importância no imaginário pop-rock da terceira década do rock.

Atém de compor e transpirar autonomia sexual, Debbie admitia, para horror do senso comum, que o rock’n’roll copulasse com a emergente discothèque, como aconteceu nos hits de massa “Heart of Glass” (1978) e “Call Me” (1980), esse último composto em dupla com o gênio italiano da disco Giorgio Moroder. “A música (‘Heart of Glass’) irritou muitos críticos, mas como Chris, o dadaísta, gosta de dizer, ela nos tornou punks na cara do punk”, provoca a autora, equilibrando-se na corda bamba das múltiplas tensões (e atrações reprimidas) entre rock e disco, música branca e música negra, rock progressivo e punk rock, rhythm’n’blues e disco music, e assim por diante.

Segundo a lógica de Debbie, Patti Smith, colega nos anos heróicos do antro punk-new wave nova-iorquino CBGB/OMFUG (sigla que designava Country, Blue Grass, Blues and Other Music for Uplifting Gormandizers), enfrentava o machismo e a misoginia da indústria musical (e provavelmente do público) no masculino, enquanto ela própria arcava com a feminilidade confrontadora na liderança de quatro rapazes punk-rockers. Como esmiuça no texto, seu verdadeiro e maior modelo feminino era Marilyn Monroe, loira supostamente burra da mitologia hollywoodiana que morreu numa poça de barbitúricos aos 36 anos, em 1962, quando Debbie Harry tinha 17 anos.

“Ela era uma mulher interpretando a ideia masculina de uma mulher”, afirma a admiradora que costumava fantasiar que fosse filha de Marilyn Monroe. Deixa evidente, no relato, que pretendia superar o mito de feminilidade que a antecedeu, através da tomada de rédeas da própria identidade feminina. Em seu caso, foi fazê-lo a bordo de cabelos platinum blonde (costumava descolori-los desde os 14 anos, diz), vestuário sensual e comportamento sexual agressivo e impositivo. Os episódios de agressão sexual desde a infância também compõem a parte mais confessional de Face a Face, tratados de modo contido e altivo, mas sem véus atenuadores sobre o que aconteceu. “Minha personagem Blondie era uma boneca inflável com um lado sombrio, provocativo e agressivo. Eu estava interpretando, mas era muito séria”, demarca. “Eu adorava sexo. Acho que eu talvez tivesse um apetite sexual exacerbado, mas não via nenhum problema nisso; era totalmente natural”, complementa, em outra passagem, distanciando a figura dos predadores masculinos de sua própria recusa a se comportar como presa indefesa ou autopiedosa.

Debbie Harry passa com graça pelos tempestuosos anos pré-Blondie, quando foi integrante coadjuvante de uma sisuda banda folk psicodélica chamada Wind in the Willows (“éramos uma espécie de pequena orquestra, um tipo de música folk barroca, mas misturada com elementos de percussão”), em 1968; assistiu a shows de Janis Joplin e do The Velvet Underground de Lou Reed John Cale e ao mítico Festival de Woodstock; trabalhou como garçonete no Max’s Kansas City, reduto noturno da corte pop art de Andy Warhol, onde esteve cara a cara (mas não de igual para igual) com Miles Davis Jimi Hendrix; iniciou-se no uso de heroína, entre outros experimentos; e trabalhou como coelhinha da Playboy. “Durei oito ou nove meses no Playboy Club, mais ou menos o mesmo tempo que no Max’s, aí devolvi o espartilho, o colarinho, as orelhas e o rabo – eles não deixam você ficar com a fantasia”, resume.

Debbie Harry

A gênese do Blondie tal como descrita por Debbie Harry remete à cena glam rock da primeira metade dos anos 1970 (influenciada sobretudo pela andrógina banda New York Dolls) e à formação do efêmero trio vocal feminino Stillettoes (“musicalmente, era uma miscelânea, meio musical extravagante, meio girl group, um pouco R&B e um pouco glitter rock – todas nós éramos loucas pelos Dolls), em 1973. “Lembro-me de David Bowie aparecer em um de nossos shows com sua esposa, Angie“, escreve. O trio feminino se apoiava numa banda masculina, e ali foi onde começou a parceria musical e extra-musical com Chris Stein. Tal como a dupla Cilibrinas do Éden de Rita Lee aqui no Brasil, não houve futuro para as Stillettoes de Debbie Garry.

Fora do trio, em 1974, Debbie e Chris iniciaram a era Blondie, primeiro como Angel and the Snake, tocando no CBGB’s entre bandas nascentes como RamonesTelevision, Talking HeadsThe Heartbreakers, Dead BoysMink DeVilleMisfitsThe Cramps The B-52’s. “Fazíamos nossa própria versão rock de músicas como ‘Lady Marmalade’ (1974), de Patti LaBelle. Minha ideia era tornar o rock dançante de novo”, lembra, referindo-se a um dos pontos de partida da disco music e ao instinto provocativo mesmo em relação aos pares punk/new wave.

"Parallel Lines" (1978), de Blondie
“Parallel Lines” (1978), terceiro e definitivo álbum de Blondie, com “Heart of Glass”

Blondie integrava a face mais pop da cena CBGB’s, em contraste com o campo que Debbie classifica como pertencente às “pessoas das artes/intelectuais”, provavelmente representado por Patti Smith,  Television, Richard Hell & The Voidoids Suicide, mas reivindica com sutileza seu lugar na história: “Não havia ninguém no CBGB’s vestindo camisetas escrito ‘punk’, mas eu era punk. Ainda sou”. O espírito “faça você mesmo” norteou a idealização da imagem Blondie, os rapazes substituindo os cabelos longos da era hippie pelos cortes estilo mod, a garota confeccionando visuais a partir de estampas de zebra, minivestidos de lantejoulas e calças retas (“nada de boca de sino, eu estava farta de bocas de sino”) – todas adquiridas em brechós, a preços irrisórios.

"Blondie" (1976)Blondie, o disco de estreia, saiu na virada de 1976 para 1977, primeiro pelo selo nova-iorquino Private Stock, a seguir pela gravadora inglesa Chrysalis, que catapultaria a fase de ouro da banda. Já em 1977, o Blondie foi escolhido como banda de abertura de cerca de 20 shows do álbum The Idiot, que reabilitava o proto-punk Iggy Pop, sob produção de David Bowie, também tecladista do ex-The Stooges na turnê. “Podiam ter chamado qualquer um no mundo para abrir para eles, mas nos escolheram, basicamente uma banda local que recebera um pouco de atenção. É claro que ficamos extasiados”, narra Debbie. “A porta se abriu e David e Iggy entraram e se apresentaram. Todos nós suspiramos. Nós os tietamos como idiotas.”

Debbie Harry reivindica mais um pioneirismo musical, na imersão feita pelo casal nos primórdios da cultura hip-hop, de artistas como o artista visual e rapper Fab 5 Freddy (“lembro-me de ele aparecer no CBGB’s e apenas ficar por ali, apesar de chamar a atenção, pois pouquíssimos negros iam lá”), que os levou a seu primeiro show de rap, no Bronx, em 1977. Em sua interpretação, tratava-se de “uma outra cena punk correndo em paralelo à nossa”. O intercâmbio musical levaria à criação da obra-prima “Rapture” (1980), que hoje seria considerada apropriação cultural, mas cujo videoclipe contou com a presença de Fab 5 Freddy e do emergente Jean-Michel Basquiat interpretando um DJ, numa participação inicialmente imaginada para Grandmaster Flash. Debbie afirma que ela e Chris compraram, por US$ 300, a primeira pintura que Basquiat vendeu na vida, “Self Portrait with Suzanne”.

“Rapture” está em Autoamerican (1980), último grande álbum da primeira fase do Blondie, descrito pela artista como um tratado de diversidade musical, cultural e racial, com “rap, reggae, rock, pop, Broadway, disco, jazz”. Já empurrando o Blondie para o penhasco, a crítica não reagiu bem: “Em uma resenha particularmente estúpida, de apenas uma estrela, a Rolling Stone nos acusou de ‘proclamar a morte do pop’ com esse disco”.

"KooKoo" (1981), de Debbie HarryDas afinidades com a música negra nasceu o primeiro álbum solo da cantora, KooKoo (1981), produzido por Nile Rodgers Bernard Edwards, a dupla artesã da sonoridade disco music do grupo Chic, dois anos antes de o produtor Rodgers levar David Bowie ao topo do das paradas com Let’s Dance e três anos antes de ele acrescentar o toque de midas definitivo ao álbum Like a Virgin, da iniciante Madonna. “Sempre senti que Madonna era a única que importava para a gravadora”, escreve Debbie, falando sobre o tempo em que esteve contratada como artista solo no mesmo selo da outra loira, Sire. “Quando Debravation (1993) foi lançado, ela saiu na turnê Blondie Ambition (1990). (O cineasta) John Waters dizia: ‘Debbie piscou por dois minutos enquanto cuidava de Chris e Madonna roubou sua carreira'”, espeta, com a peculiar e mordaz discrição.

Debbie Harry, por Andy Warhol, em 1980
Debbie, por Warhol, em 1980
"Rock Bird" (1986), de Debbie Harry
As quatro capas de “Rockbird” (1986)

Antes de Madonna monopolizar a ambição loira na arena pop, a ex-garoçonete do Max’s Kansas City conquistou o afeto de Andy Warhol, que a transformou em pop art (em 1980), colocou-a na capa de sua revista Interview e idealizou as quatro versões da capa de Rockbird (1986), segundo álbum solo de Debbie Harry. The Hunter (1982) marcou a primeira despedida do Blondie e coincidiu com o declínio de saúde de Chris Stein, mais tarde diagnosticado como portador de uma doença rara, pênfigo vulgar. “Eu o mantive abastecido de heroína. Ele usou a droga durante todo o tempo em que ficou internado”, ela relata, pragmaticamente, uma fase particularmente junkie do casal: “Nem tudo era para Chris; eu com certeza estava me satisfazendo também, ficando o mais anestesiada possível. Não acho que teria conseguido lidar de outra forma. Nem sempre usamos drogas para nos sentir bem; muitas vezes, trata-se de sentir menos”. Segundo a artista, a separação de Chris se consumou no mesmo dia em que Warhol morreu, em 1987.

Debbie Harry em "Hairspray" (1988), de John Waters
O penteado em ponto de interrogação da vilã racista de “Hairspray” (1988)

Enquanto a carreira musical desacelerava nos anos 1980, Debbie participou como atriz de dois filmes antológicos, Videodrome (1983), de David Cronenberg (“foi visionário e é muitas vezes citado com um dos primeiros filmes cyberpunk”), e a anárquica comédia multirracial Hairspray (1988), de John Waters. A gravadora de Debbie na época não permitiu que ela compusesse para o filme ou cantasse nele – pior, disse, acontecera em 1982, quando a gravadora vetou sua participação como atriz em Blade Renner (1982), de Ridley Scott. “Quanto mais alto chegávamos na hierarquia da fama, menos a gravadora queria que fizéssemos, a não ser para o Blondie, principalmente eu”.

Depois de quatro discos solo timidamente ecoados pela indústria fonográfica e dois trabalhos com o grupo The Jazz Passengers, Debbie Harry sucumbiu à revelia à proposta de Chris Stein, que, recuperado, queria a volta do Blondie, o que aconteceria em 1999, 17 anos depois do fim, com o belo e inédito CD No Exit e o extraordinário hit “Maria“. Desde 1999, a banda apresentou cinco álbuns de composições inéditas (e um de regravações dos clássicos pop dos 1970 e 1980). O mais recente deles foi o pesado Pollinator (2017), com composições feitas especialmente por SiaJohnny Marr e Nick Valensi (dos Strokes) e participações especiais da brava Laurie Anderson (viúva, desde 2013, de Lou Reed) e da companheira desbravadora de punk rock Joan Jett. Debbie relata as duras emoções de estar trabalhando em Pollinator no estúdio Magic Shop quando morreu David Bowie, que havia gravado ali seus dois derradeiros trabalhos, The Next Day (2013) e Blackstar (2016), esse lançado no dia do 69º aniversário de Bowie, dois dias depois de sua morte. Tal como grande parte dos estúdios da era dura da música popular, o Magic Shop encerraria atividades em março de 2016, deixando o polinizador Pollinator como semente.

O autorretrato pintado por Debbie Harry em Face e Face resulta denso e complexo. “O Blondie, inicialmente, nunca foi levado a sério pela indústria musical”, ela constata, recostada confortavelmente na evidência de que a longevidade da banda e a permanência de sua identidade feminina num oceano masculino foi suficiente (e crucial) para que sua assinatura autoral ficasse tatuada para sempre na história do rock, do punk, da new wave, da disco, do rap, do reggae, do funk etc. Valeu a pena, afinal de contas, apostar na androginia com seta apontada para o polo feminino, como atesta a feroz “A Rose by Any Name” (2014), interpretada ao lado de Beth Ditto, mulher por trás e à frente da banda neopunk The Gossip, de um tempo em que florescem herdeiras de Debbie Harry por todo canto. “If you’re a boy or if you’e a girl/ I’ll love you just the same”, proclama “A Rose by Any Name”, andrógina ainda e mais uma vez.

Escrevendo em 2019, aos 74 anos, a sex symbol feminina máxima da era punk-new wave não afeta inocência nem ingenuidade, mesmo quando expõe a contrariedade com que se viu exposta e transparente em pôsters na Times Square de Nova York, no lançamento do primeiro Blondie, o mesmo disco aberto pelo explosivo rock “X Offender“, que a gravadora não deixara se chamar “Sex Offender”: “Fiquei furiosa. Não porque meus mamilos estavam à mostra para o mundo inteiro, o que nem me irritava tanto. Houve fotos minhas mais reveladoras na Punk e na Creem. Mas elas eram divertidas e irônicas, brincavam com a ideia de uma pin-up em uma revista de rock underground; uma situação muito diferente de um engravatado de uma gravadora explorando sua sexualidade. Sexo vende, é o que dizem, e não sou burra, sei disso. Mas nos meus próprios termos, não nos de um executivo qualquer”.

Espectros femininos plurais como os de Marilyn Monroe, Patti Smith e Madonna sobrevoam a consciência de autonomia feminina da autora e intérprete de “Die Young Stay Pretty” (1979): “Sexo sempre é o que vende mais. Sexo é o que faz tudo acontecer, é o motivo pelo qual as pessoas se vestem bem, penteiam os cabelos, escovam os dentes e tomam banho. No campo do entretenimento, sex appeal, aparência e talento são os fatores primários (…) Sentia que eu era uma mulher com o cérebro, a iniciativa e a força de um homem – e ser bonita não torna ninguém idiota”. Livre da idiotia ontem, hoje e sempre, Debbie Harry reitera em Face a Face a grandeza e a perenidade de não morrer jovem e permanecer bonita.

"Face a Face" (2019), de Debbie Harry

Face a FaceDe Debbie Harry, com colaboração de Sylvie Simmons. Alta Books, 368 pág., R$ 88.

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