Cena de

Antes de qualquer coisa, o filme Marte Um, de Gabriel Martins, representa um teste para cada espectadora e espectador, no que diz respeito ao que mudou e ao que permanece igual no racismo “cordial” brasileiro, depois de já alguns anos em que as questões de identidade se tornaram um assunto tão incontornável que nem a publicidade, o marketing e o capitalismo selvagem podem mais ignorá-las. O trabalho do diretor mineiro se iniciou em 2015, mas Marte Um só veio a ser filmado no final de 2018, quando o resultado da eleição presidencial já era conhecido. Não à toa, “Bolsonaro” é a primeira palavra que se ouve na tela, ainda que a eleição do político neofascista não ultrapasse o pano de fundo da história de Marte Um.

O elenco do filme é todo formado por atrizes e atores não-brancos, com uma ou outra exceção entre figurantes passageiros. É o primeiro sinal para que cada espectador(a) meça dentro de si a persistência, ou não, da naturalização do racismo: já assistimos a milhares de filmes que não tinham nenhum preto na frente das câmeras (atrás delas não sabemos não certo), isso nunca foi razão de estranhamento (para brancos), e agora? Não se trata de um espelhamento, e aí vem o segundo teste: todos os atores e atrizes são de fato não-brancos, mesmo aqueles que interpretam personagens ricos, como a síndica do edifício de luxo onde Wellington (Carlos Francisco) trabalha como zelador ou o dono do apartamento equipado em que Tércia (Rejane Faria), esposa de Wellington, é diarista. O patrão de Tércia é Tokinho (ator e personagem), que além de não-branco é homossexual e pessoa de baixa estatura (o Brasil não parece ter encontrado ainda um termo substitutivo para o pejorativo “anão”), concentrando em si uma acumulação de possíveis estranhamentos.

Não se trata de um espelho invertido da supremacia branca que sempre governou Hollywood, Globo e outras fábricas de sonhos (e pesadelos): nos filmes e novelas dominados por brancos, não era incomum nem causador de espanto que personagens secundários em profissões subalternas (como os protagonistas de Marte Um) fossem, apenas esses, interpretados por artistas negro(a)s. Sutilmente, o filme afirma que a chaga é racial e é também social, ao contrário do que pregavam anos atrás os adversários das cotas raciais nas universidades brasileiras. Cor de pele é também questão de classe social, algo que apenas brancos estritos do topo da pirâmide podem ainda fingir que não entendem. Aquela velha ordem, mimetizada em todos os cantos da vida real e da vida ficcional, é uma roupa gasta que não nos serve mais. Com ou sem Bolsonaro.

Conforme narra Martins quando fala de seu filme, a produção começou quando o Brasil era próspero, sob a governança atiçadora de identidades de Dilma Rousseff, e terminou sob impacto da eleição de seu antípoda, representante identitário dos homens brancos heterossexuais ricos que quase sempre governaram o Brasil e o mundo, a Globo e Hollywood. Nos quatro anos entre esse momento e a estreia nos cinemas, na quinta-feira passada, a tormenta econômica e pandêmica varreu o Brasil a bordo de inflação, miséria, fome e morte, e eis-nos aqui nos momentos que antecedem mais uma eleição presidencial, que pode nos livrar ou nos acorrentar por mais quatro anos ao neofascismo racista, machista, homofóbico, classista, antipetista, odiador de pobres etc. etc. etc. Marte Um pisca feito farol na névoa de tempestade.

A eleição de 2018 é circunstancial na trama, mas permite ver que muitas das suspeitas e medos daquele momento se consolidaram, como se pode medir pelas expressões carregadas das personagens e pelas situações tristes que elas vivem – e pela vida real de 2022. Quase flutuante no tempo, o quarteto de protagonistas se completa pela filha jovem Eunice (Camilla Damião), que atravessa a difícil afirmação da homossexualidade, e pelo filho menino Deivinho (Cícero Lucas), que caminha rumo ao sonho paterno de se tornar jogador de futebol, mas quer mesmo é ser astrofísico.

O enredo é triste, embora o filme não o seja tanto assim. Muitos estilhaços de esperança sobrevivem em 2022, tal como sobreviviam nos dias de filmagem quatro anos atrás – se não fugimos para o espaço nem morremos de susto, bala ou coronavírus, ainda estamos aqui quatro anos mais tarde. Cargas negativas e positivas se alternam (mas não se neutralizam) em cenas ricas de Marte Um que envolvem orquídeas, a lembrança de que o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, um vulcão, os Alcoólicos Anônimos, um pagode de fundo de quintal com churrasco ao som de Leandro Lehart, uma transa num apartamento de cobertura emoldurada pela voz de Emílio Santiago, um funk-putaria do Heavy Baile com Tati Quebra Barraco MC Carol, jovens negros formados na universidade, uma médica preta e uma paciente insone, um esportista latino-americano (o futebolista argentino Juan Pablo Sorín, interpretando a si próprio), uma pegadinha de programa televisivo de mundo-cão, um forró do Rasta Chinela, o sonho terráqueo de morar no planeta Marte.

“A gente carrega esse povo nas costas a vida inteira”, atiça Flávio (Russo APR), colega zelador de Wellington que sonha dar um mergulho na piscina da classe alta e se refere aos moradores do condomínio como “gozolândia”. A revolução vem aí, ou não vem. Enquanto isso, na vida real, Bolsonaro tentou arduamente sufocar tudo e todos que não lhe fossem espelho, em cada dia dos últimos quatro anos. Tentou, mas não conseguiu, e esse talvez seja o grande legado de Marte Um e de muitos filmes pretos que virão.

"Marte Um" (2022), de Gabriel Martins

Marte UmDe Gabriel Martins. Brasil, 2022, 115 min.

 

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome