João Roberto Kelly e Os Garotos da Bossa, Samba 61 ou João Roberto Kelly e Os “Garotos da Bossa”, Rozenblit/Mocambo, 1961.
1. Apresentação de Sargentelli/ “Samba do Teleco-Teco” (João Roberto Kelly)
2. “Não Sou Atleta” (João Roberto Kelly)
3. “Porque Foi Que Eu Voltei” (João Roberto Kelly)
4. “Dor de Cotovelo” (João Roberto Kelly)
5. “Samba da Cabrocha” (João Roberto Kelly)
6. “Passaporte pra Titia” (João Roberto Kelly)
7. “Chega de Lero-Lero (É Teleco-Teco Que Eu Quero)” (João Roberto Kelly)
8. “Boato” (João Roberto Kelly)
9. “Brotinho Bossa Nova” (João Roberto Kelly)
10. “Consolo de Otário” (João Roberto Kelly)
11. “Figurinha de Boite” (João Roberto Kelly)
12. “Tempos Modernos” (João Roberto Kelly)
No verbete dedicado a Louco por Você (1961), o até hoje proscrito LP de estreia de Roberto Carlos, Álbum 1 fala dos descaminhos do futuro rei do iê-iê-iê, então indeciso entre o rock, os boleros e a emergente bossa nova, e cita de passagem um obscuro álbum do mesmo ano, assinado pelo pianista e compositor carioca João Roberto Kelly, mais valente que o jovem Roberto na proposta de atirar algumas farpas em direção da bossa. Samba 61, também lançado como João Roberto Kelly e Os “Garotos da Bossa”, dá passos iniciais na invenção do sambalanço (uma versão negra, suburbana e suingada de bossa nova), num momento também indeciso, em seu caso entre o samba estereotipado em onomatopeias de teleco-teco (“Samba do Teleco-Teco”, “Chega de Lero-Lero – É Teleco-Teco Que Eu Quero”) e a adesão alegre ao novo movimento que se espalha via zona sul carioca (“Brotinho Bossa Nova”).
Em “Chega de Lero-Lero (É Teleco-Teco Que Eu Quero)”, Kelly tira um sarro explícito de João Gilberto e companhia, no interlúdio histórico pantanoso em que o presidente Jânio Quadros não sabe se vai ou se fica e a música brasileira titubeia em embarcar no foguete bossanovista. “Não, não, não, nada de sambalada, nada de sambolero, assim não é possível”, exclama antes dos primeiros acordes de violão, para continuar: “Não, não, gagueira, não/ violão gago pra mim chega, Joãozinho…”. A letra não fala em bossa nova, mas o sentido é transparente: “Chega de lero-lero/ chega de sambalada e sambolero/ é teleco-teco que eu quero/ você quer fazer samba sem pandeiro/ ninguém pinta uma baiana sem turbante e tabuleiro”. Mais indiretas aos garotos da bossa nova passam recibo do baque em “Consolo de Otário”: “Playboy de Copacabana, filhinho de papai/ papai capitalista que nem sabe de onde a gaita sai/ a carestia aumenta dia a dia/ e coitado de quem vive como eu de economia”. A luta de classes está em alta na música brasileira de 1961, abafa o caso, abafa, abafou.
Simultaneamente, o compositor grava um de seus maiores sucessos autorais, “Boato” (registrada antes por Ademilde Fonseca, em 1959), um tiro certeiro que alcançará sucesso de massa no mesmo ano, na versão samba-jazz (e sambalanço) lançada por Elza Soares em seu segundo LP, A Bossa Negra: “Você foi a mentira que virou verdade/ todo boato tem um fundo de verdade”. “Boato” teve aceitação imediata nos circuitos instrumentais do samba-jazz e fez história em várias gravações, a começar pelas de Elizeth Cardoso, Lana Bittencourt e a adolescente Elis Regina, todas ainda em 1961. No geral, a voz doce e discreta (ou seja, bossanovista) de João Roberto combina com as batucadas leves dos sambas, mas contrasta com arranjos antiquados de orquestra – a gozação contra a música da zona sul cobrará seu preço histórico.
O apego aos estereótipos e caricaturas definiria o futuro musical de João Roberto Kelly. Ele seguiu sendo gravado por Aracy de Almeida, Doris Monteiro, Miltinho, Moacyr Franco, Angela Maria, Dalva de Oliveira, Osvaldo Nunes e outros intérpretes de velha e média guarda. Mas o que marca o compositor não são os sambalanços, e sim as marchinhas que começou a desfilar na década de 1960, como “Mulata Yé, Yém Yé” (1964), Apareceu a Margarida” (1968) e a passivo-agressiva “Cabeleira do Zezé” (1963), lançada por Jorge Goulart: “Olha a cabeleira do Zezé/ será que ele é?/ será que ele é?/ (…) corta o cabelo dele!”. Essa última vertente rendeu, nos anos 1980, temas mais grosseiros, como “Maria Sapatão” (1981), “Pacotão” (1983) e “Bota a Camisinha” (1987), gravados por Chacrinha.
Com mais seriedade (e ressentimento), Kelly tentou manter viva a verve crítica no obscuríssimo álbum Festa na Paróquia (1970), cuja faixa-título, também gravada no mesmo ano pela sambalanceira Doris Monteiro, se posicionava contra os interesses paroquiais das famílias MPB: “Hoje vai ter festa na paróquia/ tem um aviso na porta principal/ cuidado com o samba brasileiro/ a noite é do som universal/ genial/ bota no pescoço uma corrente/ e fala que Noel está bissexto/ faz onda, vai de hippie, vai pra frente/ você está inserido no contexto/ moços da verdade, donos da canção/ gênios da guitarra e do camisolão/ a palavra é essa/ comunicação/ hoje a noite é vossa, enterrei na fossa/ nossas estruturas mais tradicionais/ hoje tem feira dos geniais”. O recado, em vão, era para os donos da verdade, moços da canção, gênios da fossa nova – som universal foi um nome-protótipo testado nos primórdios da tropicália. João Roberto Kelly ficou boiando no tempo-espaço, qual um Jânio Quadros da canção.