Seriam os modernistas hoje cancelados?

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Imagem com o Grupo dos Cinco, integrantes da Semana de 22
Imagem com o Grupo dos Cinco, os artífices da Semana de 22 - Foto: Reprodução

Sim, os modernistas da Semana de 22 seriam sumariamente cancelados. Se há cem anos a elite paulistana lançou uma “vaia irracional e infrene”, como escreveu Oswald de Andrade (em artigo recuperado pelo Outras Palavras), para os artistas então autodenominados de “futuristas”, o que não faria a turba digital nos dias de hoje? Motivos não faltariam.

A revisão em curso do centenário do movimento de 22, com diatribes e recalques por toda parte, se revela em obras literárias recém-lançadas e entrevistas de escritores e acadêmicos. O jornalista e biógrafo Ruy Castro foi um dos que cancelou a Semana de 22, um ato de “esperteza desonesta”, segundo o escritor Ademir Assunção.

O historiador da arte Rafael Cardoso propõe uma revisão nada edulcorada sobre os modernistas paulistas. Em Modernidade em Preto e Branco (Cia das Letras), ele critica a contumaz periodização de estilos artísticos a partir da eleição de algumas poucas obras. É o que teria acontecido com a Semana de 22, os artistas à frente do movimento e suas obras. Tomou-se a parte pelo todo. O país, nas primeiras décadas do século 20, já vivia um processo de “modernização cultural como fenômeno histórico disperso e diverso”. Ou seja, não se restringia a São Paulo. “O sentido maior do modernismo no Brasil só pode ser compreendido ao considerar outras correntes de modernização cultural em paralelo àquela geralmente reconhecida”, explica Cardoso.

Sem necessariamente dialogar com Ruy Castro, Rafael Cardoso fustiga a ideia de que o Rio era mais “moderno” do que São Paulo, que a essa altura já vivia “a mania da ‘nova arte’ (art nouveau): “A comparação entre tendências e grupos modernizadores no Rio e em São Paulo pode ser útil, mas não deve ser superestimada. Eles nunca foram inteiramente distintos”, avança.

Desenho do Grupo dos Cinco, de Anita Malfatti
Desenho do Grupo dos Cinco, de Anita Malfatti – Foto: Reprodução

Dentre os revisionismos contra o movimento de 22, um dos principais é o de que os seus artífices pertenciam à elite. O mecenas do grupo foi Paulo Prado, figura que garantiu a sustentação social e econômica do grande evento de 1922, presidia a Casa Prado Chaves, na época um dos grandes produtores de café em São Paulo e no Brasil, país responsável por 80% da produção mundial. Cem anos depois, é difícil contestar essa argumentação “canceladora”, ainda que o Grupo dos Cinco (constituído por Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Mário de Andrade e Oswald de Andrade) tenha deixado claro que se opunham “àquela gente educada nas doçuras lânguidas de Puccini e de Verdi”, nas palavras de Oswald, em 1954. O historiador Cardoso cutuca a ferida.

“Grande parte do que é reconhecido como modernista no Brasil, em termos estéticos, bate de frente com os fundamentos sociais e políticos do conceito de modernidade na história ocidental. Ideias como bem-estar coletivo, igualdade entre povos, luta de classes e revolução, intrínsecos ao contexto das vanguardas europeias, às vezes explicitados em seus manifestos, estão quase ausentes do modernismo paulista da década de 1920”, escreve Cardoso.

Outros lançamentos da Cia das Letras ajudam a alimentar o revisionismo sobre os modernistas de 22. Organizado por Gênese Andrade, Modernismos 1922-2022 é uma coletânea de artigos de autores de distintas áreas sobre o legado do movimento de cem anos atrás. O arquiteto Kazuo Nakano principia a obra lembrando que São Paulo vivenciou, entre 1914 e 1949, uma urbanização sem paralelos, quando se dá partida para a construção de seus primeiros arranha-céus, ruas e grandes avenidas. Se havia algo moderno acontecendo no Brasil, São Paulo era o lugar certo, na hora certa. 

Especializado em história cultural, o professor da Universidade de São Paulo Elias Thomé Saliba revisita episódios hoje pouco lembrados para mostrar como os modernistas gozavam lá de seus privilégios. Dois anos após a Semana de Arte Moderna de 1922, já no levante dos tenentes, em que São Paulo se transforma em um palco de guerra civil, houve uma fuga em massa dos artistas. “Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral foram para a fazenda Sertão, em Indaiatuba, uma das muitas propriedades da família da pintora. Paulo Prado, Olívia Guedes Penteado, Guilherme de Almeida e os demais próceres de 1922 foram para suas fazendas”, escreve Saliba, para concluir: “1922, portanto, se transmutou num autêntico vesúvio cultural, cuja erupção espargiu cinzas sobre a memória coletiva, obnubilando corações e mentes”.

Ainda em Modernismos 1922-2022, o jornalista Paulo Roberto Pires, editor da revista Serrote, revela como os “futuristas paulistas”, sobretudo Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia, usaram de sua proximidade com a mídia para projetarem uma imagem positiva para o movimento de 22. “Os enfant terribles ofereciam-se à grande imprensa como sujeito e objeto na irresistível retórica da novidade. Estabelece-se assim uma intensa economia de trocas: ao construir inimigos no ‘passadismo’, os jovens atrevidos faziam-se personagens, muitas vezes caricatos, do ‘artista de vanguarda’; ao provocar esteticamente tudo e todos que viam como encarnações do atraso, tornavam-se contendores no vale-tudo da polêmica jornalística”, afirma Pires.

A construção histórica de consensos em torno de 22 é real, mas cem anos depois a cultura do cancelamento revisita o mesmo sentimento de desancar com o “passadismo”. Professor de literatura brasileira na Universidad de Buenos Aires, Gonzalo Aguilar pontua que “o processo de canonização de Oswald de Andrade iniciou-se então em 1964 e durou aproximadamente quatro anos”, portanto já durante a ditadura, como também afirmou Ruy Castro. “Nesse novo contexto, posterior ao AI-5, ele continuará sendo uma fonte saudável de anarquismo, mas não tanto como teoria da cultura. O Oswald que se apresenta agora é mais afetivo, mais sexual e comunitário.”

Aguilar e outros autores de Modernismos 1922-2022 tratam o movimento antropofágico, capitaneado por Oswald, como algo que conseguiu transcender, com folga, o movimento de 22. “Se, nos anos 1960, Oswald e a Antropofagia serviram para ocupar o centro da cena cultural para opor-se à imagem da ditadura, nos anos 1970, colaboram na formação de grupos que fazem um culto à marginalidade como meio de escapar do clima sufocante imposto pelo governo”, explica Aguilar. O legado da antropofagia se vê na tropicália de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, em Zé Celso, nos concretismos de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Haroldo de Campos, nos escritos jornalísticos de Torquato Neto, no cinema marginal, e também no cinema novo.

O poeta Wilson Alves-Bezerra, em um relato pessoal de alguém nascido no fim dos anos 1970, escolarizado na década seguinte e que ingressou na universidade nos 1990, afirma que o modernismo não foi uma escolha estética, mas a única opção possível. “Oswald, que em minha adolescência era lido como o mais divertido, o mais irônico, o mais livre dos modernistas, foi, como muitos outros escritores, ganhando contornos menos generosos nos últimos anos. As novas leituras, promovidas em tempos recentes, pouco toleram, da biografia do poeta, suas ambiguidades em relação a Pagu”. Patrícia Galvão, a Pagu, foi escritora, poetisa, jornalista, militante comunista da política brasileira e um dos grandes nomes do modernismo.

Pinçado por Alves-Bezerra, uma frase da poetisa em Paixão Pagu: A Autobiografia Precoce de Patrícia Galvão (Agir, 2005) faz revirar o estômago: “Cheia de emoção, estive ao lado de Oswald, esperando que ele terminasse um artigo para eu passar à máquina. Justamente quando estava terminando de datilografar, Oswald me falou que tinha marcado um encontro com Lelia. ‘É uma aventura que me interessa. Quero ver se a garota é virgem. Apenas curiosidade sexual.’ Ocultei o choque tremendo que essas palavras produziram”.

Imagem de Oswald de Andrade
Imagem de Oswald de Andrade – Foto: Reprodução

Em Diário Confessional, Oswald de Andrade reúne textos escritos entre junho de 1948 e janeiro de 1954, que agora ressurgem publicadas num livro da Cia das Letras organizado por Manuel da Costa Pinto e com dois textos inéditos. Crônica de um período em franca ebulição econômica, social e cultural, a obra é um farto artefato para um cancelamento contemporâneo do modernista. Ele escreveu, em 1952, frases como “como se pode ter talento sendo burro. O caso Graciliano Ramos”, “Mário de Andrade, que há sete anos faleceu com cheiro de santidade literária, reclamava-se de uma certa pajelança que todo mundo risonhamente tolerava”, “(Manuel Bandeira) é um triste politiqueiro. Como crítico, é deplorável” e “as mulheres no Brasil batem o recorde da chatice literária. A horrorosa sra. Leandro Dupré, a horrorosa sra. Lygia Fagundes Telles, a horrorosa sra. Dinah Silveira de Queiroz, a mais ou menos pavorosa Lúcia Miguel Pereira, a crédula passadista Maria de Lourdes Teixeira”.

Uma pesquisa da figurinista e professora de história do vestuário e da moda Carolina Casarin resultou no livro O Guarda-Roupa Modernista, o Casal Tarsila e Oswald e a Moda, também pela Cia das Letras. Por meio de registros iconográficos, a pesquisadora revela como o icônico casal modernista, enquanto esteve junto, utilizou-se das vestimentas para passar uma imagem que revelasse a elegância e também as ambiguidades enfrentadas pelo movimento de 22 e pelo próprio país. Tarsila vestia Paul Poiret, um costureiro francês badalado pela abastada elite paulistana, mas em decadência na própria Europa. Oswald optava por uma moda cosmopolita masculina, um padrão de sua época, sem arroubos de modernidade.

“A aparência de Tarsila e Oswald e o visual que cada um elaborou para si foram importantes dentro de suas trajetórias individuais, e essa imagem não esteve desassociada de seus discursos. Nascidos na alta sociedade, ambos foram donos de guarda-roupas ilustres – o figurino da ‘brasilidade modernista’ leva a assinatura da alta-costura francesa”, arremata Carolina. Em O Guarda-Roupa Modernista, sem pretender cancelar ninguém, a pesquisadora sintetiza o que, na efeméride de 2022, a cultura do cancelamento deveria fazer: “O movimento modernista tem o papel central de colaborar para a construção de um pensamento sobre o Brasil e a cultura brasileira, mas é na rachadura do pé caloso do modernismo que ele deve ser examinado – na incompletude, na incongruência, na contradição”.

Agenda cultural comemorativa dos Cem Anos da Semana de 22:

Brasilidade Pós-Modernismo
Obras inéditas de 51 artistas, no CCBB, em São Paulo
Até 7 de março

Contingências Antropofágicas / 100 anos depois de 22
Seminários no CCBB, em São Paulo
Dias 17, 23 e 24 de fevereiro, às 17 horas

22 Periférico
Cinco artistas fazem releitura de obras dos modernistas na Fábrica de Cultura Brasilândia
Até 27 de fevereiro

Novos 22
Sarau com apresentação de Rappin’Hood no Theatro Municipal de São Paulo
Dia 14, das 19 às 20h30

Modernismos Revisitados
Encontro virtual com estudiosos Carolina Casarin, Gênese Andrade e Jorge Schwartz, na Casa Mário de Andrade
Dia 15, das 19 às 21 horas

Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil
Exposição reflete sobre a arte moderna, no Sesc 24 de Maio
De 16 de fevereiro a 7 de agosto

Era Uma Vez o Moderno
Mostra com díários, cartas, manuscritos e fotos dos modernistas no Centro Cultural Fiesp, em São Paulo
Até 29 de maio

100 anos da Semana de 22
Atividade para público infantil na produção de cartazes no Museu de Arte Moderna, em São Paulo
Dia 19, às 11 horas

Reflexos do Modernismo
Coletânea de filmes, incluindo Limite (1931), de Mario Peixoto, no streaming do À La Carte

Ciclo 22
Portal da USP relacionadas ao bicentenário da Independência e ao centenário da Semana de 22. Acesso pelo site

Obras Modernistas de São Paulo
Atividade virtual pelo site
Até 28 de fevereiro

Oficina de Colagem Recontando Tarsila
Ministrada por Iara Jamra, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, em São Paulo
Até 24 de fevereiro

A Afirmação Modernista
Exposição com 880 obras de artistas como Di Cavalcanti, Portanari e Anita Malfatti no Paço Imperial, no Rio de Janeiro
Até 20 de março

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