A guerrilha urbana musical de Don L

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O rapper Don L

Uma amostra afiada da verve do rapper brasileiro Don L se encontra na sétima faixa de seu novo álbum, chamado Roteiro para Aïnouz Volume Dois. Assim ele rima em “Pela Boca”: “Meu bonde é do Mao com O/ boladão tipo Malcolm X/ eles dizem que é mau com U/ é porque eles tão mal com L/ e eles querem difamar Don L/ eles querem que eu morra pela boca”. São versos que o paulista Itamar Assumpção poderia compor se estivesse vivo e fosse rapper, mas na maior parte do tempo Don L é mais direto que o mestre e dispensa metáforas para descrever as dores do mundo que o acompanham e perseguem. A mesma “Pela Boca” fornece um receituário feroz para combater aqueles que querem matá-lo pela boca: “Hoje eles que morrem pela boca/ que se foda os seus dólares na Bolsa/ suas empresas agora são do povo/ suas terras são floresta de novo/ suas mansão, escolas/ seus soldados mortos pelos nossos”.

Aos 40 anos, o artista nascido em Brasília, radicado em Fortaleza (CE) aos 4 anos e estabelecido na capital paulista desde 2013 apresenta-se faminto e bravio naquele que é apenas o segundo álbum solo de estúdio numa trajetória iniciada em 2005 no grupo cearense Costa a Costa, que ele dividia com outro nome de peso do hip-hop atual, o cearense nascido carioca Nego Gallo. A vida artística não tem sido mar de rosas para os dois, que em parceria lançaram apenas uma mixtape independente e incendiária, batizada Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa (2007). Depois da separação do grupo, Nego Gallo (nome artístico de Carlos Eduardo da Silva, de 47 anos) só lançou duas mixtapes, Carlin Voltou (2016) e Veterano (2019); Don L (codinome de Gabriel Linhares da Costa) acumula uma mixtape inaugural, Caro Vapor – Vida e Veneno de L (2013), alguns singles e, agora, dois volumes da planejada trilogia Roteiro para Aïnouz.

O título inspira-se na obra do cineasta também cearense Karim Aïnouz, sobretudo em dois de seus filmes nômades, o sensível e feminino O Céu de Suely (2006) e o passional Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), com os quais Don L afirma se identificar pelo sentimento de se sentir estrangeiro em qualquer lugar, que ele compartilha com os protagonistas das duas produções. Inquieto e original, o rapper tem contado sua história ao revés – o primeiro volume, de 2017, se chamava Roteiro para Aïnouz III. O último da trilogia (a ser lançado em data ainda indeterminada) será o primeiro, com histórias sobre as origens do artista.

"Roteiro para Aïnouz III" (2017), de Don LDon L iniciou a série há quatro anos no volume III, que tratava de suas relações conflituosas com a indústria musical e o show business brasileiro. “Eu tô nesse jogo por um bom tempo/ e eu nem gravei um disco”, lamentava em “Fazia Sentido“. Nesse rap e em “Eu Não Te Amo“, ele espalhava farpas literais para os produtores musicais Paula Lavigne e Rick Bonadio, os emepebistas Caetano Veloso Maria Gadú, o rapper Rincon Sapiência e o empreendedor negro Celso Athayde. Sobrava indistintamente para os lobbies da MPB (“se é MPBoy a grana vem/ igual passarinhos voando/ colando no Leblon vez em quando/ pra chupar a Lavigne/ mais do que o Athayde faz plano/ na sauna hype do Caetano/ mas eu não te amo”) e para a cena hip-hop (em “Fazia Sentido”, ele dizia estar na pista “antes da Lavigne pensar em ‘gadulizar’ uns MCs/ antes do Rincon ter um hit e receber uma geladeira Rick”, mas suavizava para os dois contemporâneos mais famosos, nos versos “eu num tô tirando o Criolo e Emicida/ eu tô falando do jogo”).

A ira reaparece mais focada e mais precisa neste Volume Dois, que elege abordar, várias vezes em tons épicos, a tragédia histórica brasileira. Na mesma “Pela Boca” citada no início, Don L define cirurgicamente seus inimigos, que não por coincidência são os inimigos do próprio Brasil: “Os alemão são os que controlam o Estado/ (…) e dizem que nós somos perigosos/ eles que mataram, escravizaram, torturaram na cela e confinaram na favela”. O levante de consciência racial que não para de crescer desde o início dos anos 2000 torna o recado ainda mais explícito: “A gente cansou de avisar, mas é que cê não pode mais encenar/ você não tem moral pra me dizer nada/ (…) vai morrer pela boca”.

Em voz sempre cálida e bem modulada, Don L ocupa as 17 faixas do novo álbum em duas tarefas principais. Grosso modo, empenha-se em denunciar as mazelas nacionais coordenadas por elites colonizadoras externas e internas, como “Pela Boca” deixa evidente. Mais especificamente e munido de coragem incomum, dedica-se ao elogio à guerrilha urbana e à luta armada, nitidamente inspirado pela nova voga em torno da figura do ex-deputado comunista baiano Carlos Marighella (1911-1969), que a extrema direita bolsonarista não foi capaz de coibir.

A peça-exemplo nesse caso é “Favela Venceu”, que perfila o inimigo mais a fundo e se comunica com o funk carioca pela citação ao “Rap das Armas” (1995) da dupla MC Junior e MC Leonardo. “A gente é comunidade junto/ a gente é mutirão em dias ruins/ bailão em dias bons/ a gente é trabalho e faculdade/ eles são coach de virgindade e identidade/ a gente é justiça, eles polícia/ Maria libido, eles milícia/ a gente é milícia também, só que zapatista”, esbraveja o compositor, pronto para a guerra. A transparência é total: “A gente é horta comunitária/ eles, condomínio dentro do shopping/ a gente é Subcomandante Marcos, eles são cabo da Rota lambendo bota/ a gente também sabe andar de glock/ a gente tem banca e eles bancam“. “Amamos Sabota e Milton Santos“, fecha questão, homenageando o geógrafo baiano e o rapper paulistano Sabotage.

“Vila Rica”, o rap de abertura, releva o inimigo e dedica-se mais a agrupar o exército aliado, auto-definido como “o terror dos bandeirantes”: “Nós tivemos baixas incontáveis/ na real já foi uma revolução, foi uma comunidade/ por cima de sangue derramado/ já fomos quilombos e cidades/ Canudos e Palmares/ originais e originários“. “Ainda virá uma revolução”, conclui o terror dos bandeirantes, antes que um coro gospel repita “Brasil, Brasil, Brasil” sobre sampler da “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso.

"Diretoria" (2021), de Tasha & Tracie
Diretoria” (2021), de Tasha & Tracie

A pilhada Vila Rica, atual Ouro Preto (MG), deixa de alegorizar o passado e viaja para o presente em “Auri Sacra Fames” (a expressão latina pode se traduzir em algo como “execrável fome do ouro”), cantado em trio com a dupla feminina de gêmeas rappers paulistanas Tasha & Tracie Okereke. Don L, que já se mostrou obcecado por enriquecimento, revê caminhos e denuncia o poder corrosivo do ouro: “Em cada quilo o extermínio/ um rio que se contamina, uma mata em chamas”. Os inimigos são mais uma vez nomeados, primeiro pelas gêmeas: “Pra vítima nós não tem vocação/ (…) tô cansada de ser refém/ hoje é nós que vai render/ (…) pode vim que nossos traumas nos deixaram brutal/ morte em vida é viver debaixo da sua bota/ miséria é o rastro que cê deixa onde passa”, em seguida por Don L: “Minha fome é de sangue dos mercenário/ (…) eles falam de apocalipse/ mas o meu eles já sentenciaram/ a fome do ouro que lhes brilha/ tem rito de sangue em cada grama”. A encruzilhada entre Estado, Igreja e Forças Armadas é onde moram o inimigo e o perigo.

A resistência guerrilheira é o assunto de “Volta da Vitória”, em mesura aos que tombaram no combate pela liberdade e ornado por sampler do rap “Us Mano e as Mina” (1999), do paulistano Xis: “Descendemos desses sonhos e nunca morremos/ nos mantivemos em cada assembleia, cada célula/ cada rincão, viela/ em cada pregação, cada cela”. O giro vitorioso apimenta um refrão vivaz em tom de vingança e profecia, “desfilando em conversíveis na Paulista/ com as armas para o ar/ eu sabia que viria o dia“, Zumbi dos PalmaresAntônio Conselheiro, Lampião Mano Brown reunidos num só rapper. “A gente já era combatente/ nos consideravam drogas/ e guerra às drogas não era sobre os entorpecentes“, complementa, lancinante, a faixa “Pânico de Nada”, lúcida e embebida na tensão/paranoia da “guerrilha urbana, guerra santa”.

A melodia sedutora de “Bingo”, que tratora “os gringo”, Raposo Tavares e “o cadáver de um bandeirante”, faz lembrar que mesmo em meio à fúria pode haver tempo e espaço para lirismo, beleza e até erotismo (caso de “Enquanto Recomeça”). Encorpado pelas vozes paulistanas da cantora Alt Kiss e do rapper Terra Preta, “Contigo pro Que For” ensaia a mesma travessia, entre a dor, o exílio, o jazz e a poesia: “O que é ser marginal aqui?/ eu já era marginal de onde eu vim, que é a margem/ dessa capital entre marginais que um dia foram rios e agora são esgotos”. Os inimigos são os bandeirantes e seus descendentes.

No lirismo brilha, por fim, a balada preta “Primavera”, que vai do lamento (“eu nunca soube reparar as estações”) à urgência de dar meia volta e “repensar meus sonhos”, sem “nunca perder a ternura” e incorporando o reggae-rap do paulistano Rael e o canto soul bonito do baiano Giovani Cidreira. “A nossa terra fértil foi vencendo o concreto/ nosso reflorestamento é lindo sem prédio”, Don L projeta um futuro disfarçado pelos verbos no passado. “Única luta que se perde é a que se abandona, e nós nunca abandonamos luta”, vaticina o guerrilheiro armado reencarnado em Don L.

"Roteiro pra Aïnouz Volume Dois"(2021), de Don L

Roteiro pra Aïnouz Volume 2De Don L. Independente.

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