Tássia Reis

Dois anos atrás, a rapper Tássia Reis lançou Próspera, seu primeiro álbum de longa duração (antes, havia lançado dois EPs, a partir de 2014). Uma das faixas mais expressivas era “Preta D+”, centrada em tema caro a dez entre dez artistas negros destes anos 2020. “Palavras cortam como facas/ dizem que a carne é fraca/ por isso eu sinto tanta dor/ e apesar de tantos tapas/ dizem que aquilo que não mata/ fortalece o sofredor/ o mundo tem que melhorar”, cantava em seu lânguido estilo jazz-rap, depois de ter colocado o problema na mesa, sem meias palavras: “Vocês me disseram que não poderiam me contratar/ porque minha aparência divergia do padrão/ (que padrão?)/ que eu era até legal/ mas meu cabelo era crespo demais (crespo demais)/ talvez alisar seria uma solução/ não, não, não, não, não, não/ que eu tinha que me enxergar/ porque toda moça preta demais (preta demais)/ sabe que o seu destino é limpar chão (chão)”.

Tássia Reis
Tássia Reis – fotos Lucas Silvestre

Com 11 faixas, Próspera D+, que sai nesta quinta-feira, 14, não é o segundo álbum cheio da cantora e compositora paulista de Jacareí, hoje com 32 anos. Ela desenvolve o disco de trajeto interrompido pela pandemia num sentido oposto ao que o primeiro Próspera procurava, vestindo os raps e traps com arranjos dançantes e lhes retirar parte da gravidade que possuíam. “Preta D+”, por exemplo, abre o novo trabalho em versão remix, despida dos 12 versos iniciais, mas mantendo o esqueleto do discurso que corta como tapa e clama pela melhora urgente do mundo, e indo rapidamente ao potente refrão: “Eu já mudei minha percepção/ agora eu sou preta demais/ mas não na sua conotação/ eu sou demais/ eu sou incrível/ eu sou demais/ e não sou invisível/ eu sou demais/ eu sou incrível/ eu sou demais/ eu sou preta demais”

Não há redundância nas muitas repetições auto-afirmativas da frase “eu sou demais”. O território foi conquistado e, apesar dos percalços, não será desperdiçado – é preciso reafirmar as vitórias e é até possível festejar, apesar do horror ao redor. A gravidade e a languidez têm sido e continuam sendo características do estilo de compor e de cantar de Tássia Reis. Os novos tratamentos das músicas podem tomar os apelidos das vertentes mais contemporâneas (e com arranjos bem mais complexos) do hip-hop, como trap, grime, em especial o soturno drill, ou mesmo os mais batidos rock (no remix de “Preta D+”) e house (na inédita “Me Beije”).

Este Próspera reloaded conserva poucas faixas exatamente como eram no original – voltam “Amora” (de versos cantados em samba e soul, com brilho, por Melvin Santhana), “Imensa Luz”, “Ah Vá” e a jazz-disco “Myriam” (feita para a mãe da artista). Outras criações reaparecem transformadas, como as agora rebatizadas “Próspera D+” e “Shonda D+” (antes só “Shonda”). Nessa última, mantêm-se as rimas incisivas de Preta Ary (“cansada de provar que mereço também”) e os versos de denúncia de Froid são substituídos pela participação mais iconoclasta da cantora e compositora trans mineira Urias (“meu lance é fazer abutre passar fome”), em mais um capítulo importante do atual polo afirmativo preto-feminino-gay-trans-etc.

“Shonda D+” se comunica com os funks-ostentação de dez anos atrás (tipo MC Guimê), tanto nos papos capitalistas sobre “cabelos, joias, tênis e alguns outros bens” como na hiperprodução visual também ostensiva dos artistas. Desse grupo é também “Dollar Euro”, em remix assinado pela DJ e produtora musical carioca Evehive e mantendo a participação em pique trava-línguas da rapper trans paulista (de Guarulhos) Monna Brutal. “Dólar, dólar, euro, euro, euro/ eu vou fazer dinheiro com aplicações/ olha, olha, olha que maneiro, se o gueto inteiro receber milhões”, diz o rap, sem dispensar dose necessária de provocação antirracista: “Não aguentam com as pretas que trampam e fazem dindim/ só pensam que minas como eu são para servir (quem?)”.

Por fim, há o bloco de faixas inéditas, que torna Próspera D+ um álbum híbrido bem ao gosto deste tempo de dissolução e embaralhamento de formatos. Entre essas, há a eletrônica, dançante e sensual “Me Beije”; a solar “Dia Bom” (disco music dividida com a santista Tulipa Ruiz e baseada na necessidade de descanso e reflexão maximizada pela fase mais aguda da pandemia); e o funk-soul também luminoso “Bêbada de Feriado”. Tássia explica que essa última foi composta há dez anos, quando ela saiu da casa dos pais e se viu fazendo paralelos entre a convivência familiar e um vício: “Abstinência quase leva à loucura/ preciso imediatamente de um trago de doçura/ mil doses de família/ e outras de amizade/ satisfação, sorria/ enfim, fique à vontade/ mas na verdade esse efeito é passageiro/ consumo um após o outro, quando falta bate desespero”. A interpretação aveludada amacia o discurso nem tão inofensivo assim: “Saudade aperta, eu volto pro boteco/ vocês são minha vida”.

Ainda que seja impossível recuperar o que a covid-19 (e não só ela) nos roubou, Tássia consegue reacender o fósforo de Próspera, orientar uma pegada afrofuturista mais marcada para sua continuação e, acima de tudo, empreender mais um esforço coletivo e comunitário da nova música preta brasileira. Pretas demais, cada uma à sua maneira, são Tássia Reis, Monna Brutal, Evehive, Preta Ary, Urias, Tulipa Ruiz, Melvin Santhana, dona Myriam. E, sim, elas são demais.

"Próspera D+" (2021), de Tássia Reis

Próspera D+. De Tássia Reis. Independente/Altafonte.

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