Jorge du Peixe

Há coisas que só a passagem do tempo pode proporcionar, e entre essas está o (re)encontro multigeracional entre “o rei do baião”, Luiz Gonzaga, e o manguebeat, movimento musical que só viria a tomar vulto a partir de 1994, cinco anos depois da morte de Gonzagão. No novo Baião Granfino, o conterrâneo pernambucano Jorge du Peixe, um dos sócios fundadores da Nação Zumbi de Chico Science, coloca a música do pioneiríssimo sanfoneiro e forrozeiro em perspectiva que ela muito raramente ocupou antes.

Quem conhece o álbum Los Sebosos Postizos (2012), projeto em que a Nação Zumbi reinterpretava a obra de Jorge Ben(Jor), sabe de antemão que deve esperar alguma esquisitice nas releituras de Jorge du Peixe. A tendência inversora de Los Sebosos Postizos, que desaceleraram e ensombreceram o cancioneiro quase sempre otimista e alegre de Ben Jor, prevalece em parte em Baião Granfino, que começa por uma versão rouca, roqueira (sem clichês), climática e soturna da canção de pássaro aprisionado “Assum Preto”, obra-prima da arte nordestina desde seu advento em 1950. Vocais femininos solenes emolduram de beleza a versão esquisita, tortuosa e moderna de Jorge.

Tal como acontecia no tributo coletivo a Ben Jor, o xará recifense não se preocupa em privilegiar o repertório mais reluzente de Gonzaga. De clássicos inquestionáveis do autor, só entram “Assum Preto”, “Qui Nem Jiló” (1949, numa versão agreste e quase alegre) e “Sabiá” (1951, melancólica como a original). Na fronteira ficam o divertido “Pagode Russo”, que foi lançado em 1947, mas só apareceu com letra em 1984, e “O Fole Roncou”, festa nordestina que Gonzagão gravou em 1973 e que em seguida ganhou status pop-rock pela versão envenenada de Baby Consuelo (hoje Baby do Brasil), em 1978.

Na releitura de “O Fole Roncou” em Baião Granfino, Jorge du Peixe comete a proeza de acondicionar, em três minutos e meio, forró sanfoneiro, forrock, música armorial, Novos Baianos, Quinteto Violado, manguebeat, guitarra de trio elétrico e a MPB nordestina dos anos 1970 – essa última também pela presença do vozeirão da veterana paraibana Cátia de França, rara compositora na geração nordestina masculina de Alceu ValençaZé RamalhoFagnerBelchiorGeraldo AzevedoEdnardo etc.

As seis faixas restantes indicam uma seleção bem particular de Jorge, que nasceu em 1967 e trata com carinho material gonzaguiano menos antigo e mais obscuro que o habitual, de quando o intérprete era criança (ou estava para nascer) e o compositor já não estava mais surfando em sucesso. São os casos de “Cacimba Nova” (1964), “Sanfona Sentida” – gravada em 1973 pelo co-autor (com AnastáciaDominguinhos e em 1976 por Gonzaga -, “Orélia” (1979) e “Acácia Amarela” (1982).

Completam o repertório um atípico maracatu rural gravado pelo inventor do baião (o afro-brasileiro “Rei Bantu”, de 1950) e uma ironia fina com a urbanização e a descaracterização do baião na década de 1950, “Baião Granfino” (1955), não por acaso a faixa que batizou o álbum. Diz a letra: “Quando chegou pra cidade o menino/ já tinha um nome, que era baião/ porém agora ficou tão granfino/ nem liga pro sertão/ ai, ai, baião, você venceu/ mas no sertão ninguém lhe esqueceu/ ai, ai, baião, ai, siga seu destino/ você já cresceu, já nos esqueceu, ficou tão granfino”. Somados, o maracatu ancestral e o baião urbanizado em manguebeat compõem um dos inúmeros retratos possíveis da música pernambucana praticada dos anos 1990 em diante pelos mangueboys, em especial os da Nação Zumbi e do Mundo Livre S/A.

"Baião Granfino" (2021), de Jorge du Peixe

Baião Granfino. De Jorge du Peixe. Babel.

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