Farol aceso do manguebit, o grupo pernamucano Mundo Livre S/A traz a São Paulo neste feriado de 15 de novembro, na Casa Natura, a celebração pelo aniversário de 30 anos de seu álbum inaugural, Samba Esquema Noise, também uma pedra fundamental do movimento que renovou e impulsionou a música brasileira ao futuro nos hoje longínquos anos 1990. A história é mais longa do que isso, no entanto, e acaba de ser recontada em minúcias nas 552 páginas do recém-lançado Mundo Livre S/A 4.0 – Do Punk ao Mangue – 40 Anos de Lutas, Conquistas e Muito Ativismo Político e Cultural (Ilustre Editora), assinado pelo jornalista niteroiense Pedro de Luna.
A trajetória da banda de punk-samba liderada por Fred Zero Quatro, pernambucano de Jaboatão dos Guararapes (município da Região Metropolitana de Recife), hoje com 59 anos, é contada desde a pré-história e a fundação do Mundo Livre S/A, em março de 1984. Chega até os dias de resistência pós-pandêmica, com o álbum mais recente, Walking Dead Folia, lançado em janeiro de 2022 como um tratado musical furibundo sobre e contra o bolsonarismo e suas sempre macabras variáveis. A folia do morto-vivo, por sinal, segue morta-vivíssima em 2024, na figura do homem-bomba de extrema direita Tiu França, que morreu em 13 de novembro (com os mesmos 59 anos de Zero Quatro) tentando matar a (estátua d)a Justiça na Praça dos Três Poderes de Brasília.
Em São Paulo, a biografia de Fred e sua banda será vendida durante o show de Samba Esquema Noise na Casa Natura. Para São Paulo, traz à tona episódios de uma relação mista entre a principal banda manguebit (ao lado da Nação Zumbi fundada por Chico Science) e a capital paulista, cidade responsável em boa medida pela acolhida nacional dos “dias da manguetown”, quando o Mundo Livre S/A já completava sua primeira década de existência. Em várias passagens, o livro expõe o ressentimento de Zero Quatro (também jornalista, além de artista) com a imprensa paulistana, que abraçou a banda em 1994 e soltou suas mãos conforme o líder e compositor elevava o tom contra o golpismo de direita instaurado a partir de 2013, a deposição via golpe de Dilma Rousseff em 2016, a prisão golpista de Luiz Inácio Lula da Silva em 2018, a ascensão neofascista movida a facada em 2018, e contando.
A reação de Fred a essa série catastrófica de acontecimentos justifica a menção ao “muito ativismo político e cultural” no subtítulo do livro de Luna, além de ajudar a entender o abandono do Mundo Livre pela imprensa (não apenas) paulistana, cada dia mais convertida em facção e braço executivo do morto-vivismo neoliberal/neofascista “Necropolitano” (esse, por sinal, é o título da faixa de abertura de Walking Dead Folia).
“A imprensa do Tucanistão me ligava dizendo que adorou o disco, mas não saiu uma linha pra falar do álbum. Foi totalmente boicotado. Você tá me entendendo?”, vocifera o artista no livro, numa fala de 2018, referindo-se a outro dos trabalhos do Mundo Livre nos anos 2010, o intrincado Novas Lendas da Etnia Toshi Babaa, de 2012, anterior portanto ao derrame golpista iniciado pela captura das “jornadas de junho” de 2013 pelo ideário extremo-direitista.
Nos anos de ascensão do mangue, dos luminosos Samba Esquema Noise, Guentando a Ôia (1996), Carnaval na Obra (1998) e Por Pouco (2000), a música de Fred Zero Quatro foi várias vezes rotulada pejorativamente como “panfletária” por vozes do aparato midiático despolitizante. A partir de O Outro Mundo de Manuela Rosário (de 2003, ano da primeira posse de Lula na Presidência), a acusação depreciativa foi diminuindo na mesma medida em que diminuía a repercussão da banda-repórter entre o operariado jornalístico – para alegria e alívio dos patrões. Dos anos golpistas em diante, para a mídia (semi-)hegemônica, o Mundo Livre S/A deixou de ser “panfletário” para simplesmente deixar de ser, de existir. É dessa invisibilização compartilhada por muitos que Zero Quatro reclama, com razão.
Uma banda morta-viva?
Nos anos tucanos da década de 1990, o Mundo Livre S/A liderou, em paralelo com os Racionais MC’s de Mano Brown, uma frente de bandas engajadas política, social, racial e ambientalmente, composta por Nação Zumbi (enquanto Chico Science viveu, até 1997), o Planet Hemp dos futuros solistas Marcelo D2, BNegão e Black Alien, O Rappa (quando o líder intelectual era Marcelo Yuka), Cidade Negra e outras menos constantes.
Baseado na famigerada “liberdade de expressão”, o jornalismo neoliberal de então tolerou e até se fascinou por pepitas “panfletárias” de discurso anticapitalista e anti-imperialista da Nação Zumbi, como “Da Lama ao Caos“, “A Cidade” e “Banditismo por uma Questão de Classe” (todas de 1994), e do Mundo Livre S/A, no naipe das marxistas “A Bola do Jogo” e “Livre Iniciativa” (de 1994); “Destruindo a Camada de Ozônio“, a zapatista “Desafiando Roma”, “Militando na Contra-Informação“, “Roendo os Restos de Ronald Reagan” (1996); “O Africano e o Ariano” (acusando o preconceito racista do intelectual paraibano/pernambucano Ariano Suassuna contra o músico periférico e afrodescendente Chico Science), “Édipo, o Homem Que Virou Veículo” (1998)…
Para constrangimento da mídia anexa aos Estados Unidos e à Europa, alguns atos dessa geração ganharam popularidade notável nos anos em que a internet apenas começava a encorpar, apesar de encararem o escorregadio tema do antirracismo. Casos eloquentes foram o rap-realidade dos Racionais em Sobrevivendo no Inferno (1997) e de toda uma gama de rappers paulistanos; do hip-hop carioca maconheiro do Planet Hemp; d'”A Carne” da banda reggae fluminense Farofa Carioca (liderada por Seu Jorge, aqui numa letra assinada por Yuka); de libelos d’O Rappa como “Todo Camburão Tem um Pouco de Navio Negreiro” (1994) e “Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero)” (1999); etc.
Entre a morte de uns (Chico Science, Sabotage, Chorão, Marcelo Yuka, o produtor Carlos Eduardo Miranda) e a suavização de outros (Seu Jorge, Marcelo D2), Fred Zero Quatro manteve-se firme como homem-bomba antifascista sagaz o suficiente para não morrer junto com a auto-implosão. Ele nunca deixou de elevar o tom, um pouquinho mais a cada nova canção. A lista é longa desde “Caiu a Ficha” (2001, ode utópica anti-imperialista sobre os atentados ao World Trade Center), “O Outro Mundo de Xicão Xucuru“, “Azia Amazônica“, “Plantando uma Muda em Cima de Washington/ Marcha contra o Muro do Império” (2003), “Laura Bush Tem um Senhor Problema“, a anti-imperalista, anticonsumista e anticapitalista “Soy Loco por Sol” (2006), “Estela (A Fumaça do Pajé Miti Subitxxy)” (2006), “Cho Seung-Hui Song” (2007, em ataque à xenofobia e, portanto, em defesa de indígenas, nômades, ciganos e migrantes planeta adentro)…
Se na fase de glória (digamos assim) o Mundo Livre transitou entre gravadoras multinacionais (Warner, PolyGram) e o aparato nacional de comunicação (a Abril Music do Grupo Abril, a Trama do Sistema S), a fase 99% independente se iniciou com Bebadogroove (2006) e escalou os anos 2010 em Novas Lendas da Etnia Toshi Babaa, A Dança dos Não Famosos (2018) e Walking Dead Folia.
Mais audacioso que nunca, o cancioneiro de Fred Zero Quatro falou de tudo que quis em “Nenhum Cristão na Via Láctea” (que levanta a formidável questão de que não existem seguidores de Jesus Cristo fora do planeta Terra), “Tua Carne Black Label” (2011); “Batismo NukGruuuvk” (com referências ásperas como “criança-nazi-esperança” e “jovem em situação de rico”), “Eletrochoque de Gestão” (uma gozação explícita em cima do hoje morto-vivo Tucanistão), “Meu Nome Está no Topo da Sagrada Planilha” (2018), “Black Friday” (2020, assinada por Sonofabit – son of a bitch? -, projeto solo ainda inédito de Zero Quatro), “Baile Infectado”, “Necropolitano”, “Conselho (Do Pastor Trans para a Amante Miliciana)“…
Momentos como “Vem pra Rua Tomar na Cabeça – Um Passo Novo” (2018) e “Walking Dead Ciranda (A Maldição 2)” (2022, com Jorge du Peixe, vocalista da Nação Zumbi pós-Chico Science) podem ajudar a entender a dificuldade de aceitação do Mundo Livre S/A junto aos jovens da geração Z, pelo modo cáustico como criticam as novas esquerdas “cirandeiras”. “Venha pra Rua Tomar na Cabeça” atua em duas frentes, por um lado açoitando os métodos fascistas da repressão policial às manifestações públicas (“é golpe de Estado”, Fred profere o palavrão detestado pela mídia tradicional), mas por outro dando um esculacho implícito na adesão acrítica de colegas de geração como O Rappa de Marcelo Falcão às jornadas de junho de 2013, que degringolaram em nascedouro do protofascismo que levaria à folia walking dead de um exército-zumbi de Véios da Havan e Tius França.
A explicitude dessas e doutras letras espantou toda uma horda de jornalistas, produtores musicais e promotores de shows (entre outros bichos neo-líbero-fascistas), e Fred e o Mundo Livre passaram a ser isolados como mortos-vivos na mídia e no showbizz. Mundo Livre S/A fornece dados contundentes a respeito da diminuição do espaço de trabalho da banda após o golpe de 2016, que se estende até os dias atuais.
Walking Dead Folia veio colocar as coisas nos devidos lugares: o espectro político que trata o Mundo Livre como morto-vivo é, ele próprio, um desfile dantesco de mortos-vivos de toda espécie, de aécios a bozos; de necropolíticos a destruidores da camada de ozônio, da Amazônia e do Pantanal; dos exterminadores de sem-terra aos servos do sionismo genocida; da Rede Globo (plim-plim!) ao agro (é pop), e lá vai fumaça. Para a mídia, negócio mesmo é se fazer de estátua cega diante do Mundo Livre – Tiu França surge neste final de 2024 como o protótipo vivo (ou morto) dos necropolitanos que marcham feito zumbis (não o de Palmares) planeta afora.
A provocação-síntese da fase Walking Dead Folia se dá nos singles “Baile Infectado” e “Usura Emergencial“, de 2021, ambos protestos indignados aos tempos de pandemia, cloroquina, eugenia e genocídio bolsonaristas. “Presidente é bom no jet ski/ miliciano adora ostentação/ o Congresso passa álcool-gel/ e a Suprema Corte lava as mãos”, rebola o samba-xote-ciranda “Baile Infectado” (referência ao filme-símbolo do manguebit, Baile Perfumado, de 1996), antes de concluir com os agora ainda mais arrepiantes versos “hora de assumir a direção/ temos que explodir esse lugar/ como é que eu cheguei nesse lugar?/ meu amor sorriu e eu despertei/ pensando na próxima eleição”.
Os singles de “Baile Infectado” e “Usura Emergencial” nasceram acompanhados de um ensaio fotográfico em que a banda veste a camisa e a causa do Sistema Único de Saúde (SUS), consolidado vigorosamente a partir da pandemia como um projeto menos capitalista que socialista pela preservação da vida humana, contra garatujas infindáveis de negacionismo, terraplanismo (só a Terra plana pode explicar a inexistência de cristãos na Via Láctea), xenofobia, bolsonarismo, trumpismo, elonmuskismo etc. etc. etc. “Geno, geno, geno, geno, geno, geno, geno, eugenia/ hidróxi, hidróxi, hidróxi, hidroxicloro
mega-incorporação”, fustiga “Usura Emergencial”.
Como sabem o mundo vegetal, as pedras e os protozoários, a sobrevivência do Mundo Livre, por longos 40 anos, ameaça em cheio a sobrevivência dos dinossauros do (auto-)extermínio neofascista, e (não) só por isso a banda merece cada uma das 552 páginas do livro de Pedro de Luna. Autor de biografias musicais de Champingon (da banda Charlie Brown Jr.), do Planet Hemp e de seu ex-integrante Speed, Luna veste a capa corajosa do muso Fred e coloca os pingos nos is que 99 entre cem jornalistas preferem deixar quieto (ou rosnando) no canto da sala.
30 anos de manguebit, 40 anos de Mundo Livre S/A
Além de fazer jus a Fred Zero Quatro e a sua banda, Mundo Livre S/A 4.0 avança na historiografia do manguebit, por abordar o lado luminoso do ecossistema de “caranguejos com cérebro” do movimento pernambucano sem deixar de iluminar o outro lado da lua. Ainda que de modo sutil, o livro reúne documentação farta sobre as instabilidades e desavenças entre bandas manguebit, entre o mangue e antecessores como Alceu Valença ou o Movimento Armorial de Ariano Suassuna, entre o mangue e o rock brasileiro dos anos 1980, entre empresários de bandas manguebit, entre o Mundo Livre e as gravadoras, entre integrantes da própria banda.
“A condição era trocar o vocalista, de repente colocar uma mulher para cantar, e uma percussão pra ficar igual a Nação”, conta Fred a certa altura, em referência velada à voracidade com que inicialmente os executivos multinacionais queriam transformar o manguebit na próxima axé music ou Chico Science no “novo Jackson do Pandeiro” (como Zero Quatro ouviu de um executivo da Sony). “Chico e a Nação Zumbi gravaram primeiro porque era natural que as gravadoras se interessassem pela música deles que era menos rebuscada, menos elaborada que a nossa”, ele revela numa entrevista de 1994, escancarando já na partida a fogueira de vaidades e a competição (capitalistas) intra-mangues.
Um momento em que a tensão fica latente é o do álbum Da Lama ao Caos (1994), estreia de Chico Science & Nação Zumbi e do próprio movimento no mercado nacional. O texto-manifesto encartado no álbum saiu dos neurônios do caranguejo Zero Quatro e do “ministro das comunicações” do manguebit, Renato L (jornalista e futuro secretário municipal de Cultura do Recife), mas veio sem assinatura nem créditos a ninguém.
O imbróglio era maior ainda. A origem de “Rios, Pontes e Overdrives”, uma das faixas principais de Da Lama ao Caos, remonta a 1992. Foi quando Otto, pernambucano de Belo Jardim que chegou a integrar a Nação Zumbi em sua pré-história, chamou Chico Science para ajudá-lo a compor um jingle para a campanha do petista Humberto Costa à Prefeitura de Recife. A parte já criada por Otto mencionava com orgulho uma saraivada de bairros periféricos da cidade: “Boa Viagem, Genipapo, Bonifácio, Santo Amaro, Madalena, Boa Vista, Dois Irmãoos, é o Cais do Porto, é Caxangá, é Brasilit, Beberibe, CDU/ Capibaribe, é o Centrão”. A lista seria incorporada a “Rios, Pontes e Overdrives”, mas Otto, àquela altura já integrante do Mundo Livre como percussionista, também não foi creditado como co-autor em Da Lama ao Caos. Zero Quatro meteu a colher indiretamente, gravando em Samba Esquema Noise uma canção diferente, mas de título “Rios (Smart Drugs), Pontes e Overdrives”, assinada por ele solitariamente.
Outra co-autoria não concedida a Otto, agora pelo próprio Zero Quatro, é a de “Girando em Torno do Sol“, de Guentando a Ôia, segundo e último álbum com Otto como integrante do Mundo Livre. Ao final da faixa, ele surge cantando um improviso em homenagem ao pernambucano histórico Naná Vasconcelos, que por uma casualidade fazia participação especial percussiva no álbum. Otto recapturaria esses versos para si em seu primeiro álbum solo, Samba pra Burro (1998), transformando-os em música própria, sob o título “Celular de Naná”.
Divergências e pendências não impediram as manifestações de amor e solidariedade entre (muitos) mangueboys e (poucas) manguegirls. Exemplo na seara de Zero Quatro é o potente manguebit “O Africano e o Ariano” (1998), que procura defender Chico Science postumamente do rancor armorial de Suassuna.
Afirmou Zero Quatro em depoimento a este entrevistador, resgatado por Pedro de Luna da Folha de S.Paulo à época do lançamento de Carnaval na Obra: “A música é a única homenagem explícita a Chico Science no CD, a vontade de mostrá-lo como herdeiro de uma tradição, não como o cara que veio renegar, achincalhar ou emporcalhar a tradição. Os ‘arianos’, chamemos assim, só reconhecem a importância da cultura negra até certo ponto”. A catracada na música é cabal: “Há quatro séculos a alma africana tem sido um motor/ da inquietação, da resistência, da transgressão/ o negro sempre quis sair do gueto/ fugir da opressão fazendo história/ ganhando o mundo com estilo/ e é assim que a alma africana sobrevive/ com brilho e vigor/ em todo o Novo Continente/ (…) mas é o ariano que ignora o africano/ ou é o africano que ignora o ariano?”. Menos que nacionalistas, as diatribes de Ariano Suassuna contra Chico e o manguebit seriam, para Fred, mais uma representação do modelo colonial-racista de casa-grande & senzala. Gilberto Freyre agitava-se morto-vivo no túmulo do maracatu.
Arianos à parte e entre altos e baixos do manguebit, do Mundo Livre S/A e de Fred Zero Quatro, o livro de Luna faz um relato corpulento sobre a música combativa brasileira dos anos 1990, 2000, 2010 e 2020, por intermédio de um de seus mais consistentes representates. Lembra que em 2008 Fred batizou uma coletânea do Mundo Livre de Combat Samba, em referência direta ao Combat Rock (1982) dos punks ingleses The Clash. De fato, havia matriz ianque (além de africana, asiática, oriental etc. e tal) no caldo nutritivo do manguebit. Mas não só.
Com olhos e ouvidos voltados mais para cá do que para lá, Zero Quatro inverteu seu ídolo Jorge Ben (Jor), que havia injetado guitarras no samba: desta vez, alçou o cavaquinho a instrumento de frente de uma banda de rock. Um sem-número de composições de Fred foi pensada em homenagem e/ou sob influência de Ben, a mais popular delas “Meu Esquema” (2000), um recombinado de samba, bossa nova, bossa negra e samba esquema novo. Para lá de Jorge, Zero Quatro compôs uma identidade própria feita a partir de estilhaços do baiano Tom Zé e do cearense Belchior, dos quais extraiu exemplos de combatitividade, humor ácido e orgulho nordestino como formas políticas adicionais. Confirmando-o aos trancos e barrancos, o Nordeste tem sido decisivo na sustentação do Partido dos Trabalhadores e do lado esquerdo do sol no poder central do Brasil – para desespero de xenófobos, racistas, direitopatas e neofascistas em geral.
Também na clave ensolarada, Mundo Livre S/A 4.0 abre os braços para a espantosa biodiversidade que brotou de Pernambuco a partir do manguebit de Chico e Fred, citando um a um uma pequena multidão de artistas mais ou menos longevos (dentre os quais nem todos conseguiram alcançar o mercado fonográfico): Lamento Negro (uma das origens de Science); o Mestre Ambrósio de Siba; o Eddie de Fabio Trummer; Jorge Cabeleira e O Dia em Que Seremos Todos Inúteis; Cannibal e seus Devotos do Ódio (mais tarde apenas Devotos); Faces do Subúrbio; Dona Margarida Pereira; Paulo Francis Vai pro Céu; a Orquestra Santa Massa do DJ Dolores; Serpente Negra; Via Sat; o Cascabulho de Silvério Pessoa; o Querosene Jacaré de Ortinho; Véio Mangaba & Suas Pastoras Endiabradas; Cavalo do Cão; Matalanamão; Dreadful Boys; Conservados em Formol; Living in the Shit; o Sheik Tosado de Chinaina; Mombojó; o Cordel do Fogo Encantado de Lirinha; a rara banda manguegay Textículos de Mary & A Banda d’As Cachorra; o Songo de Zé Cafofinho; o supergrupo Academia da Berlinda; o Combo X do ex-Nação Zumbi Gilmar Bola 8; a Orquestra Contemporânea de Olinda; a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério…
Minoritárias, as manguegirls se fizeram e fazem representar em figuras como as extemporâneas Selma do Coco e Aurinha do Coco; Tania Christal; a Lara Hanouska de Stela Campos; a Comadre Fulozinha de Karina Buhr, Isaar de França e Alessandra Leão. Mais recentemente, novíssimos pernambucanos dançam a ciranda das gerações, com Johnny Hooker (filho gay power de uma manguegirl com um mangueboy), Almério, Martins, Doralyce, Duda Beat, MC Loma (e todo o elenco brega-funk), João Gomes e Zé Vaqueiro (na seara do piseiro), Natascha Falcão, Juliano Holanda, Barro, Clarice Falcão, Ayrton Montarroyos e quem mais chegar.
O presente, portanto, confirma a história contada em Mundo Livre S/A 4.0 e evidencia que, mesmo sendo crescentemente enterrado sob o calçamento da especulação imobiliária, o ecossistema mangue segue servindo de matéria-prima, semeadura e estuário para uma família bastante particular e inventiva dentro da música brasileira. Os mortos-vivos não somos nós.