O governo de Jair Bolsonaro editou nesta terça-feira o decreto 10.755, pelo qual modifica o atual regulamento do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), mecanismo que abriga a Lei Rouanet, o Fundo Nacional de Cultura, os Fundos de Investimento Culturais e Artísticos (Ficart) e as outras ações culturais do Estado brasileiro. Basicamente, essa reedição cumpre a função de atualizar a legalidade das ações, reformando o texto que mantinha a cultura na alçada do Ministério da Cidadania (onde foi abrigada até novembro de 2019), Mas, lido atentamente, o decreto significa um aprofundamento da centralização do poder decisório nas mãos de Mário Frias, secretário Especial de Cultura, além de promover ingerência em diversas instâncias de deliberação da sociedade para aumentar o controle e a possibilidade de censura.
À secretaria de Frias, foi concedido o poder de pautar pareceristas para analisar “ações relevantes e não previstas” em lei, além de outras prerrogativas (ele é quem definirá o que são instituições culturais sem fins lucrativos, por exemplo). O texto abre brechas para se incrementar a possibilidade de cerceamento da liberdade de expressão, já que do ponto de vista das ações culturais não há sombra de atividade de estímulo no atual governo – a captação da Lei Rouanet, por exemplo, atingiu somente R$ 250 milhões até este final de julho de 2021, léguas do R$ 1,4 bilhão captado em 2020.
O decreto desta terça-feira de Jair Bolsonaro mantém o dispositivo que permite que o presidente da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Mário Frias) eventualmente delibere ad referendum da comissão, “independentemente do oferecimento prévio dos subsídios” dos experts de cada área, e ainda lhe confere, além do voto ordinário, o voto de qualidade para desempatar votações. Frias ainda poderá delegar ao Secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (André Porciúncula) o exercício da presidência da comissão, e convidar “especialistas e representantes de outros órgãos e entidades, públicos e privados, para participar de suas reuniões, sem direito a voto”. Evidentemente, trata-se de um convite aos apoiadores do atual regime invadirem o aparato de Estado.
Todas as decisões relativas aos mecanismos de gestão e governança do Fundo Nacional de Cultura (FNC) serão tomadas pelo “politburo” bolsonarista, já que os integrantes da sua comissão, a começar do Secretário Especial de Cultura (Mário Frias, que a presidirá), integram o governo. Frias também preside o Conselho Nacional de Política Cultural.
Além do dirigismo cultural, o governo opera um aumento na burocracia. Toda inauguração de uma obra financiada por recursos da Lei Rouanet, por exemplo, só poderá acontecer com a aprovação prévia da Secretaria Especial de Cultura (essa semana, haverá a reabertura do Museu da Língua Portuguesa, que já sofrerá influência dessa nova redação). E o decreto veta a utilização de “símbolos ideológicos ou partidários” no material de divulgação, o que é temerário porque o atual governo acha que é ideológico ou partidário tudo que não é bolsonarista ou aliado político.
A ingerência se espalha por diversas áreas do espectro cultural, mas é especialmente anticonstitucional quando o decreto avança sobre o papel da agência reguladora, no caso a Ancine: “A Ancine e a Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo, com o auxílio do agente financeiro credenciado, deverão: 1. realizar avaliação periódica da efetividade das estratégias promovidas por meio do Fundo Setorial do Audiovisual“. Não é papel do agente financeiro avaliar política de Estado, assim como a Lei das Agências Reguladoras estabelece que elas são caracterizadas “pela ausência de tutela ou subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira”.
O secretário Especial de Cultura substituto do governo, André Porciúncula, comemorou no Twitter a edição do decreto e a assunção de duas áreas à condição de postulantes de recursos financiados: Belas Artes (um conceito do século 18) e Arte Sacra, “além de ter reduzido burocracia e criado ferramentas para focar a popularização da lei para os pequenos artistas”, acrescentou. Tirando a redação defeituosa do post do secretário, não há nenhuma evidência de mecanismos de redução de burocracia e de ferramentas de popularização no novo texto. Já a inclusão de Arte Sacra (o patrimônio histórico já cobria esse segmento no que tem de mais significativo) pode representar apenas uma abertura para uma explosão de patrocínios para artistas de música gospel simpáticos ao bolsonarismo.