Cena do curta "Uma Canção para Latasha", de Sophia Nahli Allison

Após o anúncio dos filmes indicados à 93ª edição dos Academy Awards, em 15 de março, a imprensa especializada celebrou os ecos de lutas emancipatórias nas produções elegidas para premiação, principalmente na categoria de Melhor Filme. Bela Vingança (Emerald Fennell, 2020), por exemplo, foi encarada como uma catarse para os arroubos do #MeToo. Já Os 7 de Chicago (Aaron Sorkin, 2020) e Judas e o Messias Negro (Shaka King, 2021) foram apreciados por recuperarem a verve dos movimentos por direitos civis nos Estados Unidos dos anos 1960 e 1970, dignificando, na esteira do contemporâneo Black Lives Matter, figuras revolucionárias como Bobby Seale e Fred Hampton, do Partido dos Panteras Negras. 

Também no Brasil, buscou-se exercitar, através do cinema, esse tipo de rememoração que, como coloca Walter Benjamin, restitui a história a partir da luta entre oprimidos e opressores. No XVIII Janela Internacional de Cinema do Recife, ocorrido no último mês, as lideranças afro-americanas que inspiraram as grandes produções hollywoodianas foram apresentadas fora da roupagem da ficção: os documentários Angela Davis – Retrato de uma Revolucionária (Yolande du Luart, 1971); Eldridge Cleaver, Pantera Negra (William Klein, 1969); e O Assassinato de Fred Hampton (Howard Alk e Mike Gray, 1971) buscaram retratar, de maneira observativa, o fervor político que atravessava a vida (e a morte) das suas personagens. Ainda, o filme Meeting the Man – James Baldwin in Paris (Terence Dixon, 1970), que está entre os lançamentos mais recentes da plataforma Mubi, ressoa o contexto social dessas outras produções ao tentar abordar a obra do célebre romancista que havia se refugiado em Paris para não padecer do mesmo destino de muitos dos seus companheiros. Essa película, no entanto, é resultado não de uma observação discreta, mas do confronto entre um diretor branco e um entrevistado negro, que tensiona sobre sua incapacidade de representar adversidades alheias. 

Entre essas distintas narrativas que emergem hoje, talvez não tão dispersamente, desponta o curta A Love Song for Latasha (Sophia Nahli Allison, 2019). Assim como Os 7 de Chicago e Judas e o Messias Negro, o filme foi indicado ao Oscar deste ano; assim como Angela Davis – Retrato de uma Revolucionária, Eldridge Cleaver, Pantera Negra, O Assassinato de Fred Hampton e Meeting the Man, trata-se de um documentário que almeja problematizar embates raciais e racistas na suposta terra da democracia ocidental. Não obstante, ao contrário de todas essas obras, A Love Song for Latasha é, primeiramente, um trabalho dirigido por uma mulher negra – grupo pouco prestigiado nas premiações da indústria cinematográfica. Ainda, não pretende abordar experiências de ativistas ou personalidades públicas da política estadunidense, mas as desventuras de uma menina comum, reverberadas, certamente, pelas mesmas estruturas sociais. Latasha Harlins gostava de comer batata frita, sonhava em ser advogada, se empenhava em manter uma boa média na escola e cantarolava trechos de “Stand by Me” com a melhor amiga. Latasha Harlins foi morta no dia 16 de março de 1991 com um tiro na nuca por Soon Ja Du, dona de uma mercearia que acusara a jovem de roubar um suco de laranja que custava US$ 1,75. Latasha Harlins morreu aos 15 anos com uma nota de dois dólares na mão.  

O curta reaviva o potencial tateante do testemunho e da memória para dar conta de um acontecimento inenarrável. Através dos depoimentos da prima e da amiga de Latasha – Shinese e Ty –, busca-se arquitetar o perfil de uma jovem altiva e confiante, orgulhosa da sua cor e otimista em relação ao seu futuro. As imagens, salientando as lacunas das reminiscências, costuram uma narrativa estilhaçada pelo trauma e pelo luto de uma vida tida como perdível. Não se trata de imagens de arquivo, como pode parecer num primeiro momento. Recorrendo à estética ranhurada e desgastada de fitas caseiras, o documentário produz novas figurações para materializar a oralidade das falas das personagens, engendrando um arquivo audiovisual que, a princípio, sequer existia. 

Essas imagens são quase literais, no começo; em certa medida, cartográficas, revisitando espaços que tangenciavam a rotina da protagonista. Em um dos seus primeiros esforços de recordação, por exemplo, Ty fala sobre o dia em que conheceu Latasha, que a ajudara a se livrar de crianças que a importunavam na piscina. Na tela, vemos a reencenação do estorvo; a câmera na água simula o afogamento do qual Ty quase fora vítima, não fosse a intervenção da amiga destemida. Gradativamente, os planos abertos e demorados vão se tornando mais erráticos, caóticos.  Quando a narração alcança o dia do assassinato de Latasha, as imagens se tornam lampejos: uma sala, uma loja, um corredor, um parque, um centro comunitário – territórios que ocuparam o imaginário da tragédia. As imagens se tornam lampejos até se tornarem impossíveis. Quando Ty chega em casa para escutar dos pais sobre o falecimento da amiga, as imagens abrem mão da sua capacidade de representação. Diante da impossibilidade de capturar o arrebatamento de uma dor profunda, recorre-se à animação, mais vocacionada para expressar o inacessível. Em uma escolha sobretudo ética, o documentário não mostra a gravação da morte de Latasha, repetidamente veiculada pelas redes de televisão da época. Latasha jamais é vista, nessa obra, como um corpo morto, como um corpo matável. 

Mas sua morte também é catalisadora, paradoxalmente, de movimentos pela defesa da vida, das vidas negras. Foi, inclusive, um dos estopins para os distúrbios de Los Angeles de 1992. A história de Latasha ganhou, naquele momento, uma força genérica capaz de sintetizar as demandas por direitos e reconhecimento de uma comunidade espoliada pela violência contínua. Isso posto, o documentário de Sophia Nahli Allison, sensível que é, não deixa de pontuar, também, sua singularidade. A foto de Latasha, que encerra a jornada amarga do filme, também afirma sua individualidade, dimensão muitas vezes obnubilada em narrativas de martírio. Do pessoal ao político, avulta-se a capacidade disruptiva do cinema: A Love Song for Latasha busca no passado fagulhas de indignação que conseguem inflamar os embates do presente. Uma pena que na tradução do título para o português – Uma Canção para Latasha – abandone-se a ideia de que a obra é, também, sobre amor. 

A Love Song for Latasha concorre ao Oscar de Melhor Documentário de Curta-Metragem. Participou dos festivais de Sundance, Tribeca e New Orleans, entre outros. Está disponível na Netflix. 

 

Juliana Gusman é jornalista, professora e pesquisadora, doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

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