Morto em 22 de setembro, aos 76 anos, Gerson King Combo teve duas identidades antes daquela que o tornou conhecido, a de rei do funk e do soul à moda brasileira. Primeiro, a partir de 1963, ele começou a dublar e dançar no programa televisivo Hoje É Dia de Rock, de Jair de Taumaturgo. Entrou assim no contexto da nascente jovem guarda, enquanto seu irmão mais velho, Getúlio Côrtes, galgava posições como compositor de hits iê-iê-iê como “Negro Gato”, “Noite de Terror”, “O Feio” e “Pega Ladrão”, todas de 1965 e gravadas por Roberto Carlos. Nascidos em Madureira, no Rio de Janeiro, os irmãos Côrtes foram dissidentes naquela meca do samba “de raiz”, um pela via da jovem guarda, outro pela da chamada black music.

Por intermédio de Getúlio, Gerson foi ser coreógrafo do estourado programa Jovem Guarda, de Roberto, Erasmo Carlos Wanderléa. A seguir, coreografaria também as chacretes de Chacrinha. Sua segunda identidade pode ser ouvida no álbum Brazilian Soul, de 1970, creditado a Gerson Combo e A Turma do Soul. Antes, enquanto integrava o conjunto de baile Fórmula 7 (com músicos como Helio DelmiroLuizão MaiaMárcio Montarroyos Hugo Bellard), Gerson foi convocado para coreografar o show de 1969 de Wilson Simonal. E entrou assim no espírito da pilantragem, que combinava romantismo, black music e ritmos brasileiros. Em Brazilian Soul, aparecem versões envenenadas de “Mulher Rendeira” (com Os Diagonais, do soulman paraibano Cassiano), “Fiz a Cama na Varanda”, “Aos Pés da Santa Cruz” (hino antigo com Orlando Silva e com João Gilberto), “Quero Voltar pra Bahia” (do soulman pernambucano Paulo Diniz), “Na Baixa do Sapateiro”, “Xote das Meninas” (sucesso de Luiz Gonzaga) e a hoje compreendida como racista “Teu Cabelo Não Nega”, entre outras.

No mesmo 1970, o black power à brasileira foi implodido pelos “bons costumes”, que se enfureceram com o Festival Internacional da Canção, da Globo, onde brilhavam Toni Tornado Erlon Chaves, que ensaiavam cenas sexuais com mulheres brancas e afinal foram presos pelo regime militar. Gerson cantava na Banda Veneno de Erlon Chaves, que apresentou no festival o samba-funk lascivo “Eu Quero Mocotó”, de Jorge Ben.

Nos anos seguintes, Gerson continuou excursionando pelo exterior com Simonal, que beliscava a utopia do pan-africanismo e o levou a conhecer James Brown Stevie Wonder. O coreógrafo-cantor adotou um visual inspirado em Brown, o que pode ser visto no compacto de 1973 que contém a balada “Quando a Cidade Acorda”, composta para ele por Roberto e Erasmo.

Em 1974, Simonal seria extirpado da memória musical brasileira, num curioso conluio entre os militares e as esquerdas. A perseguição feroz aos artistas negros truncou a carreira comercial de Gerson, e ele então se atirou com paixão aos bailes periféricos do Rio de Janeiro, onde voltaria a vicejar o sonho da união black. Ele participou de uma das formações iniciais da Banda Black Rio, um grupo que furava o bloqueio e chegava às paradas de sucesso com o som que ficaria então conhecido como black Rio. O pioneiro Gerson surfou na onda e em 1977 pôde lançar um novo disco, agora com o nome (inspirado em King Curtis) e a identidade definitivos.

Gerson King Combo apresenta arranjos eloquentes executados por uma big band preta, a União Black, e canções compostas pelo próprio artista, que sai assim do domínio das releituras de canções alheias com A Turma do Soul. “Esse É o Nosso Black Brother”, “Swing do Rei”, “Uma Chance” e “God Save the Queen” exibem o virtuosismo dos arranjos, mas o libelo textual acontece em “Mandamentos Black”: “Dançar como dança um black/ amar como anda um black/ andar como anda um black/ usar sempre cumprimento black/ falar como fala um black/ eu te amo, brother”. A fala inicial declamada grita de eloquência: “Brother, assuma a sua mente, brother, e chegue a uma poderosa conclusão, de que os blacks não querem ofender a ninguém, brother. O que nós queremos é dançar, dançar, dançar e curtir muito soul. Não sei se estou me fazendo entender. O certo é seguir os mandamentos black”.

“Minha mãe é negra/ graças a deus/ o meu pai é um black também/ graças a Deus/ e é por isso que o meu corpo treme todo com o soul a balançar”, canta com vozeirão em “Hereditariedade”, outra faixa a misturar politizado orgulho negro e descompromissado hedonismo. O álbum Volume II (1978) seguiu a mesma linha, com uma canção de abertura composta pelo soulman baiano Hyldon, nova série de composições de King Combo e outro arrasa-quarteirão, “Funk Brother Soul”: “Eu vou te ensinar/ como se dança o funk brother soul”. A imprensa musical fez vista grossa para o disco.

Novamente, a ditadura se incomodou com a ascensão black. Dessa vez não houve prisões estridentes como as de 1970, mas, por razões ainda não totalmente documentadas por historiadores e pesquisadores, o movimento refluiu na virada dos anos 1970 para os 1980. Costuma-se culpar por isso a discothèque, que afinal era uma outra modalidade de black music (aproveitada, por exemplo, por Lady Zu). O fato é que então Gerson submergiu. Conseguiu outro trabalho e abandonou a música, que só retomaria no final dos anos 1990. Na nova fase, 100% King Combo, publicou os álbuns Mensageiro da Paz (2001) e Soul da Paz (2009). Neste 2020, lançou o single e clipe “Deixe Sair o Suor”, versão de “The Breakdown” (dos soulmen Rufus Thomas Eddie Floyd), como antecipador de um futuro álbum ao vivo, ainda inédito.

Como legado, além dos vários movimentos musicais de que participou direta ou indiretamente, Gerson King Combo deixa uma black music intransigente, que pouco olhou para os ritmos brasileiros (como faziam artistas como Tim Maia, Cassiano e Hyldon) e parecia se influenciar apenas por músicos estadunidenses. Não necessariamente nessa ordem, Gerson ficava de costas para um país e uma cultura que sempre estiveram de costas para ele.

 

 

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