O homem sem talento. Capa. Reprodução
O homem sem talento. Capa. Reprodução

Por trás de um traço e de um enredo apenas aparentemente simples, “O homem sem talento” [Editora Veneta, 2019, 240 p.; tradução: Esther Sumi; R$ 64,90], de Yoshiharu Tsuge (Tóquio, 1937), publicado originalmente em 1986, mas que só agora ganha edição brasileira, é, além de tudo, uma bela reflexão acerca da relação arte x mercado. Seu protagonista, Sukezo Sukegawa, alter ego do autor, é alguém cuja capacidade de sonhar o empurra para a inação e consequentemente para a miséria. A hq é também um passeio pela cultura japonesa, de modo geral.

Há elementos autobiográficos nos quadrinhos de Tsuge, embora “O homem sem talento” não se constitua exatamente uma autobiografia. No prefácio, Marcello Quintanilha – vencedor do Angoulême com “Tungstênio” [Veneta, 2014] – pontua: “Mas, por outro lado, então certamente também se constitui uma autobiografia denunciando-se que a grandeza da arte é independente da sua intencionalidade, e que a arte pode, sim, se produzir e reproduzir involuntariamente, como as pedras dos rios que coram os logradouros mais caseiros e vulgares, e os entroncamentos mais ordinários e triviais das vielas por onde passamos, do mesmo modo que pode, involuntariamente, se autoconsumir, porque a verdade tonitruante é que a arte jamais precisou do elemento humano”, referindo-se, antes, ao fato de que “Tsuge, como Sukegawa, também comercializou máquinas fotográficas” e “também se afastou dos quadrinhos e cultivou a devoção aos Suiseki”, a “honorável arte de contemplar rochas” esculpidas naturalmente ao longo do tempo.

Acompanhamos a jornada do protagonista, em permanente estado onírico, em suas desventuras por ofícios considerados inúteis – como, de resto, muitas vezes a arte o é –, ameaçando-lhe o relacionamento e a dignidade, com as constantes humilhações que sofre da esposa diante de sua incapacidade em se engajar em algo rentável, que possa garantir-lhe o sustento da casa e da família. Enquanto isso, Sukegawa sonha. Acordado.

Tsuge é pioneiro “do gênero mangá watakushi (“quadrinhos do eu”), como são conhecidos os quadrinhos autobiográficos japoneses”, de que “O homem sem talento” é considerada “a obra máxima”, como atesta um texto na quarta capa (ou deveria dizer primeira, em se tratando de um mangá?).

“Hoje em dia, existem muitos autores que expõem sua experiência cotidiana nas histórias em quadrinhos. No Japão também esse gênero, conhecido sob o termo ensaio em quadrinhos, ocupa boa parte das estantes das livrarias e obtém sucesso garantido. Se “O homem sem talento” se vale claramente dessa mesma matriz, apresenta contudo uma grande diferença. Não se trata de um diário íntimo e não pode se considerar o livro um ensaio em quadrinhos [bande dessinée de essai]. Tsuge é um autor que busca incessantemente, para além do caráter prosaico e pessoal daquilo que ele desenha, alcançar uma forma de verdade última, algo que permita, se não compreender o humano, ao menos vivenciar o humano”, anota o editor e pesquisador de mangás Mitsuhiro Asakawa, no prefácio da edição francesa reproduzido nesta edição.

Num tempo de embrutecimento, obscurantismo e indelicadeza galopantes, será difícil ao leitor não se comover diante de “O homem sem talento” – os que poderiam achar que Sukegawa não passa de mero preguiçoso ou vagabundo, certamente não perderão tempo com histórias em quadrinhos, portanto com arte, portanto com coisas inúteis.

Mas se “a arte existe por que a vida não basta”, como nos ensinou Ferreira Gullar, é justamente ela, a arte, um dos elementos que nos torna humanos. Como o resenhista, o protagonista (embora um personagem de ficção) ou o autor.

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