Beth Carvalho em animada reunião na sede do Cacique de Ramos. Foto: Ivan Klingen. Reprodução
Beth Carvalho em animada reunião na sede do Cacique de Ramos. Foto: Ivan Klingen. Reprodução

Uma roda de samba no mítico Bip Bip, em Copacabana, com a presença de, entre outros bambas, Mário Lago (1911-2002). Por detrás do balcão, o lendário Alfredinho (1943-2019). A cantora Beth Carvalho (1946-2019), que vemos reverenciando o compositor, filma. É a cena inicial de “Andança: os encontros e as memórias de Beth Carvalho” (Brasil, 2023, 115 minutos), documentário de Pedro Bronz, e a partir daí, nós, espectadores, fazemos um mergulho pela intimidade e personalidade desta artista ímpar.

Apesar da grandeza de Beth Carvalho, raramente vemos seu nome citado entre as maiores cantoras brasileiras, padecendo do mesmo “pecado” de Paulinho da Viola, outro que quase nunca vê seu nome entre os maiores compositores do Brasil: ambos são rotulados de sambistas, embora suas obras extrapolem a prateleira do gênero brasileiríssimo. Não que isto os diminua, pelo contrário.

Poucos são os cameramen creditados ao fim do filme. Grande parte do que assistimos em “Andança” é material do acervo pessoal da cantora – ou da filha Luana Carvalho, artista também talentosa –, filmado num tempo em que não havia smartphones à disposição. Beth Carvalho tinha, sabia disso, e afirma, a certa altura, cabeça de pesquisadora, dizia morar dentro de um arquivo. Tinha razão, sorte a nossa.

Foi em João Gilberto (1931-2019) que Beth Carvalho percebeu que cantar não era só impostar a voz. Ela queria cantar como conversa com qualquer pessoa e foi a batida revolucionária que lhe fez querer aprender violão. Chegou a frequentar reuniões da bossa nova, mas o ar elitista lhe fez também perceber querer ir além. Sua guinada, dos apartamentos para os morros, é menos comentada que a de Nara Leão (1942-1989) e a Clementina de Jesus (1901-1987) e Elizeth Cardoso (1920-1990), a quem reconhece como responsáveis por seu caminho, ela dedicou o primeiro disco que fez inteiramente dedicado ao samba.

“Andança” não é apenas um documentário sobre Beth Carvalho, não é apenas um documentário sobre samba, mas um filme que evidencia a grandeza de uma artista para além de gêneros e rótulos, é uma aula de música brasileira, de brasilidade, de negritude, de pertencimento, de orgulho do que somos enquanto nação e do desejo do que poderemos vir a ser.

Entre os parceiros Guilherme de Brito (1922-2006) e Nelson Cavaquinho (com Arlindo Cruz atrás). Foto: Ivan Klingen. Reprodução
Entre os parceiros Guilherme de Brito (1922-2006) e Nelson Cavaquinho (com Arlindo Cruz atrás). Foto: Ivan Klingen. Reprodução

Enquanto revela gravações inéditas de Nelson Cavaquinho (1911-1986, incluindo a versão original de “Folhas secas”, com pequenas alterações na letra), Cartola (1908-1980) e Arlindo Cruz, Beth Carvalho revela um modus operandi particular de combate ao machismo e ao racismo, ao garimpar repertório em mesas de botecos e rodas de sambas em quintais (o da lendária Tia Surica, da Velha Guarda da Portela, por exemplo) armadas com esta intenção, sempre com o gravador ligado.

O filme mostra também a relação de sincera cumplicidade estabelecida entre Beth Carvalho e os compositores com quem trabalhava. Ela achava injusta, por exemplo, a remuneração deles, que afinal de contas lhes forneciam repertório, pelos direitos autorais – é comovente o quase veto de Cartola quando ele lhe apresenta “O mundo é um moinho”: “é muito lenta, não é muito o teu estilo, você pode queimar a música e se queimar”, advertia. Foi desobedecido, ainda bem, com direito ao revolucionário Dino 7 Cordas (1918-2006), reinventor do violão, tocando na gravação – ele tocou também em várias gravações do autor.

Quando Luana Carvalho nasceu, entre as mensagens para a filha, além das de Beth, estão recados do avô João Carvalho, do pai Édson Cegonha (1943-2015) e improvisos de Nelson Cavaquinho, que ao rimar com carinho o próprio sobrenome artístico, vaticinava que a menina ainda iria gravar uma música sua. A comovente intimidade continua a se descortinar quando vemos cenas de mãe e filha em pistas de patinação e em um carrossel, num parque de diversões.

A grandeza de Beth Carvalho está para além da música. Madrinha de um sem número de compositores e instrumentistas, ela sempre se pôs contra segregações geográficas e sociais – “não tem zona sul ou zona norte para quem gosta de coisa boa”, responde a uma repórter sobre um suposto “bom-gostismo” de uma suposta elite. Ousou peitar o então produtor Rildo Hora e levou ao disco (compondo e tocando) a rapaziada do Cacique de Ramos e do Fundo de Quintal: nomes como Luiz Carlos da Vila (1949-2008, que adotou o nome artístico por recomendação dela), Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Sombrinha, Almir Guineto (1946-2017), Beto Sem Braço (1941-1993) e Zeca Pagodinho.

Foi Beth Carvalho quem ajudou a superar (em parte) o preconceito (ainda vigente) de que samba (e pagode) é coisa de marginais, negros e pobres. “Tudo o que é do povão tem uma barreira muito grande”, dizia, com toda razão. Sua atitude era consciente. Para ela era “a cultura popular vencendo todas as barreiras para que o Brasil seja cada vez mais brasileiro” e para isso faltava brasilidade e, para ela, brasilidade é sinônimo de negritude. Falecida no início do governo neofascista de Jair Bolsonaro (2019-2022), ela dizia, à época, sentir tratar-se do começo de um novo Brasil.

Quando completou 40 anos de idade (e 20 de carreira), Beth Carvalho reuniu a família e os amigos para celebrar no Bar Mandrake, bem a seu estilo: comida, bebida e roda de samba. Era festa, mas sem nunca descuidar do conteúdo político de sua vida e obra. Para ela, o lado político e social tinham a ver com assumir a negritude. “O Brasil é um país negro, graças a Deus”, diz, no mesmo ato em que homenageia seu motorista.

Em 1984, na inauguração do Sambódromo da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, Beth Carvalho foi homenageada pela escola de samba Unidos do Cabuçu, que defendeu o enredo “Beth Carvalho, a enamorada do samba”, com que a agremiação conquistou o título do grupo de acesso. “Foi a maior homenagem que eu já recebi”, afirmou a artista.

Sua porção política torna a aparecer em sua participação no comício da Candelária, da campanha das Diretas Já, em abril de 1984, ao lado de nomes proeminentes da política e das artes brasileiras, que lutavam por democracia – o Brasil vivia ainda sob o jugo de uma sanguinária ditadura militar (1964-1985). Já àquela época, o recado de Beth Carvalho a quem acha que arte e política não devem se misturar é cristalino. “Antes de eu ser artista, eu sou cidadã. Eu pago água, luz, telefone, gás, eu fico doente. As pessoas querem separar. Por que eu não posso dar opinião? Tenho que ter cuidado para não influenciar mal. Eu gosto das pessoas que estão preocupadas com o povo”, dizia.

Beth Carvalho tinha enorme apreço pela democracia e se valia disso até mesmo para escolher o repertório de um disco, por exemplo: reunia amigos para votar a lista final de músicas a partir de uma pré-seleção. Era, sobretudo, uma alma extremamente generosa.

No fim da vida, passou longos períodos internada em hospitais. Mas o amor pela música falava mais alto e ela nunca interrompeu a carreira, mesmo eventualmente fazendo shows deitada em uma cama, com o que ela mesma brincava: “não tem na cama com Madonna? Agora tem na cama com Beth Carvalho”.

O filme toma por título um dos maiores clássicos da carreira de Beth Carvalho, fruto da parceria de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós (1945-2013). “Andança” dá a exata ideia da grandeza da cantora, oportunizando ao fã-clube e a apreciadores de música brasileira em geral, acessar sua intimidade, nunca soando vulgar, e perpassando todas as dimensões de uma artista que cantava muito, mas sabia que isto por si só não bastava e por isso fez muito mais, entregando-se por inteiro àquilo que acreditava, fossem gravações, causas ou ideais.

Andança. Cartaz. Reprodução
Andança. Cartaz. Reprodução

*

Veja o trailer:

*

Serviço: “Andança: os encontros e as memórias de Beth Carvalho” (Brasil, 2023, 115 minutos), documentário de Pedro Bronz. Em cartaz nos cinemas brasileiros.

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome