O filme Açúcar transpõe a luta de classes na zona da mata pernambucana para tempos pré-bolsonaristas
Bastante identificada com o cinema pernambucano, a atriz brasiliense Maeve Jinkings surge estranha na tela de Açúcar, com cabelos lisos e alourados. A trama de Renata Pinheiro e Sergio Oliveira se apresenta devagar, com ênfase na ambientação mergulhada num engenho decadente de cana de açúcar na zona da mata de Pernambuco. Maria Bethânia, a personagem de Maeve, é herdeira da casa-grande, e tenta conservar a propriedade antiquada, alheia às pretensões de compradores holandeses, por um lado, e dos afro-brasileiros que adquiriram parte do território e fundaram nele o engajado Centro Cultural Cabo Verde, por outro.
Açúcar respira hostilidade de todas as partes, sobretudo nas relações entre personagens brancos e negros. As relações não se acomodaram na demorada transição da submissão escravagista do modelo casa-grande & senzala para os irresolutos embates de 2017, quando o filme foi concluído. Anterior a Bolsonaro, Açúcar flagra os personagens negros empoderados, na ofensiva, e o núcleo que restou da família branca de Bethânia acuado, encolhido, passivo-agressivo.
Numa cena-chave, a protagonista aparece às voltas com uma aparelhagem de alisar o cabelo, e então se evidencia o não-lugar de Maria Bethânia: miscigenada, ela não pertence com justeza nem aos escombros da casa-grande nem aos sucedâneos da memória da senzala. Resta a Bethânia, e talvez a seus conterrâneos de modo geral, o pesadelo.