Com 70 anos completados no dia 13 de outubro, o cantor e compositor cearense Raimundo Fagner tem parte de sua obra reeditada pela Sony Music em versão digital, nas principais plataformas. São 15 títulos que a gravadora diz colocar em circulação digitalmente pela primeira vez, 11 deles de álbuns originais da carreira do artista.
O mais antigo é o experimental Orós, de 1977, que contém o clássico “Cebola Cortada” (“teu amor é cebola cortada, meu bem,/ que logo me faz chorar/ teu amor é espinho de mandacaru/ que gosta de me arranhar”), de Petrúcio Melo e Clodo. Histórico, o álbum tem direção musical, arranjos, regências e intervenções instrumentais do endiabrado alagoano Hermeto Pascoal.
Eu Canto – Quem Viver Chorará, de 1978, foi o primeiro estouro nacional de Fagner, com “Revelação” (“quando a gente tenta/ de toda maneira/ dele se guardar/ sentimento ilhado/ morto, amordaçado/ volta a incomodar”), de Clodo e Clésio, e “Jura Secreta” (“só uma coisa me entristece/ o beijo de amor que eu não roubei”), de Sueli Costa e Abel Silva, essa lançada também pela baiana Simone. O disco tem participação do pernambucano Alceu Valença (em “Punhal de Prata”) e da cearense Amelinha (em “Motivo”).
Em Beleza, de 1979, um dos destaques é o piano acústico do acreano João Donato em cinco das oito faixas. Entre elas estão “Noturno” (“ai, coração alado/ desfolharei meus olhos/ neste escuro véu”), de Graco e Caio Sílvio, e “Ave Coração” (“eu sei que eu ando por aí/ sou andorinha solta/ e nem sei a estação em que estou vivendo/ não quero ser herói de nada”), de Clodo e Zeca Bahia.
A fase de maior inspiração artística segue com Raimundo Fagner, com a épica “Eternas Ondas” (“quanto tempo temos antes de voltarem/ aquelas ondas/ que vieram como gotas em silêncio/ tão furioso/ derrubando homens entre outros animais/ devastando a sede desses matagais”), do paraibano Zé Ramalho, que marca a adesão do artista ao universo sonoro dos músicos/arranjadores Oberdan Magalhães e Lincoln Olivetti, ligados à onda black Rio, e conta ainda com o violão de Zé Ramalho e a percussão de Naná Vasconcelos. Experimental e grandiloquente a um só tempo, o disco viceja por faixas como “Quixeramobim”, de Nonato Luiz e Fausto Nilo, e “Vaca Estrela e Boi Fubá”, do repentista cearense Patativa do Assaré.
Traduzir-Se (ou Traducir Se, em espanhol) é talvez o projeto mais ambicioso de Fagner, de congraçamento entre várias realidades das Américas portuguesa e espanhola, bem como de Portugal e, sobretudo, de Espanha. A música moura de Fagner se bifurca entre participações brilhantes da argentina Mercedes Sosa (em “Años”, do cubano Pablo Milanés) e dos espanhóis Camaron de la Isla (em “La Leyenda del Tiempo”, sobre versos de García Lorca), Joan Manuel Serrat e Manzanita. Predominam os ritmos andaluzes, flamencos, gitanos, evidentes em “Verde” (com Manzanita) e “Málaga” (do espanhol Rafael Alberti). “Fanatismo”, com versos da portuguesa Florbela Espanca, é dedicada ao capixaba Roberto Carlos, e “Traduzir-Se” é música de Fagner sobre poesia do maranhense Ferreira Gullar. É momento alto do artista, totalmente tomado pela utopia hoje maltratada e abandonada de união pan-americana.
Fagner, de 1982, aprofunda o romantismo hiperpop, como em “Pensamento”, do próprio artista: “Perdido em meus pensamentos/ é que me encontro tão só/ na boca um sabor de veneno/ no peito aquele nó”.
Palavra de Amor, de 1983, aperta a tecla do hiper-romantismo com o hit “Guerreiro Menino (Um Homem Também Chora)”, composto pelo carioca Gonzaguinha: “Um homem também chora/ menina morena/ também deseja colo/ palavras amenas/ precisa de carinho/ precisa de ternura/ precisa de um abraço/ da própria candura”. Chico Buarque canta em “Contigo”, de Fagner e Ferreira Gullar. A cigana “Visagem”, de Fagner e Fausto Nilo, é outro ponto alto: “Rasga o céu/ meu cavalo corta vento/ ligeiro como o pensamento/ não saia fora da trilha/ do alto da maravilha”.
Com cabelo new wave/new age, Fagner hiper-popifica o ultra-pop em A Mesma Pessoa, de 1984, sobretudo na faixa de abertura, “Cartaz”, de Francisco Casaverde e Fausto Nilo, que se tornará hit de pistas modernas nos anos 2000: “Você me dá prazer/ você me dá cartaz/ e tudo que eu preciso”. Em fase de ascensão do pop-rock dos anos 1980, o cearense regrava “Só Você”, hit romântico de Vinícius Cantuária, em arranjo tecnopop: “Demorei muito pra te encontrar/ agora eu quero só você/ teu jeito todo especial de ser/ vivo louco com você”.
Chico Buarque canta em “Paroara”, dele com Fagner e Fausto Nilo. Beth Carvalho aparece em “Te Esperei”, de Gereba e Capinan. Cazuza contracena com o anfitrião em “Contra-Mão”, raridade de Fagner e Belchior. Fagner, de 1985, é o ocaso da fase de maior fogo criativo do artista.
O sucesso de mais esse Fagner, de 1986, é “Dona da Minha Cabeça”, de Geraldo Azevedo e Fausto Nilo: “Eu digo e ela não acredita/ ela é bonita/ ela é bonita demais”. E participam Gonzaguinha (em sua “Forró do Gonzagão”, homenagem ao pernambucano Luiz Gonzaga) e o maestro Isaac Karabitchevsky (em “Cantigas”, de Alberto Nepomuceno).
Em seguida ao bem-sucedido Romance no Deserto (1987), O Quinze, de 1989, é auge da fase Michael Sullivan–Paulo Massadas, a dupla de compositores do baladão “Desfez de Mim”. Surpresas são as releituras de “As Dores do Mundo”, do soulman Hyldon, e de “Tortura de Amor”, do astro “cafona” Waldick Soriano.
O pacote comemorativo da Sony inclui, além dos nove álbuns originais, coletâneas e uma raridade do campo da pura curiosidade: o compacto carnavalesco Batuquê de Praia, de 1982, dividido pelo craque musical com o jogador de futebol Zico.