Em 1957, Louis Armstrong veio tocar no Teatro Polytheama, em São Paulo, com um quinteto. Conheceu Dorival Caymmi, Sivuca, Pixinguinha, Juscelino. Louis tinha um problema com o trompete: o modo como o tocava invariavelmente fazia sangrar seu lábio, e ele carregava um lenço no bolso para enxugar o sangue. Ele se virava de costas para a plateia, pegava o lenço e limpava os lábios disfarçadamente. Pode notar: quase toda foto de Louis tem um lenço no bolso. Naquela turnê, ele estava no camarim, em São Paulo, quando de repente um rapaz de olhos azuis abriu a porta de forma intempestiva e se postou à sua frente. O rapaz não falava uma palavra de inglês, mas trazia o programa do show e conseguiu, com gestos, pedir para si o lenço de Louis Armstrong. Surpreendido, o trompetista não viu alternativa. Sorriu, tirou o lenço do bolso e o assinou, dando ao rapaz. Também assinou o programa.

O rapaz que pediu o lenço de Louis Armstrong se chamava José Nogueira Netto, conhecido universalmente como Zé Nogueira, e morreu de pneumonia na manhã do dia 30 de maio, às 3h45, no Hospital São Luiz da Avenida Santo Amaro, em São Paulo. Faria 90 anos no próximo dia 14 de julho. Certas figuras são insubstituíveis – talvez seja difícil achar um outro bon vivant tão memorável quanto o velho Zé Nogueira.

Ele nasceu no Brás em São Paulo, de ascendência italiana, e cresceu entre São Paulo e Ilhabela, onde será sepultado (está sendo velado no Cemitério do Araçá). Poucas figuras eram tão amadas no mundo dos bastidores da música.

Suas paixões formavam uma tríade inseparável: música, futebol e amizades (sem esquecer o vinho e os amores). Difícil hierarquizar a qual ele devotava mais afeto. Quanto à música, foi um produtor admirável. Trabalhou por cerca de 50 anos para a Rádio Eldorado. Na sede da emissora na Aclimação, funcionou como um secretário para Roberto Carlos. Produziu o programa de jazz de Jô Soares e também os de Ed Motta, Nelson Freire e Manoel Beato. Foi ele quem organizou a festa dos 70 anos de Adoniran Barbosa. Nos anos 1980, foi diretor artístico do 150 Night Club do hotel Maksoud Plaza. Foram shows inesquecíveis: Alberta Hunter, Bobby Short, Billy Eckstine. E Frank Sinatra, pasmem!

No futebol, integrou a brava esquadra dos Namorados da Noite FC, com Carlinhos Vergueiro e Toquinho, na qual jogou por 42 anos seguidos. O time dos Namorados da Noite se tornou o mais ferrenho adversário do Polytheama, de Chico Buarque de Holanda, em ruidosos confrontos interestaduais. Zé Nogueira não faltava a nenhuma pelada das terças-feiras. Jogou a última aos 87 anos. Conseguiu ser sãopaulino e palmeirense em duas fases da vida. Na terça-feira 29, por absoluta impossibilidade, não compareceu ao coletivo dos Namorados da Noite.

Era amigo de todo mundo. Por apreciar meu texto, um dia pegou o elevador no Grupo Estado e subiu até a minha mesa para se apresentar e sugerir umas pautas. De uma modéstia absurda. Foi carne e unha com outro bon vivant memorável, Mièle. E também amigo de Ruy Castro, João Bosco, Paulinho da Viola, Roberto Carlos, Chico Buarque, Vinicius, Elis, Clara Nunes, Nelson Cavaquinho, João Nogueira, Gonzaguinha, Paulo César Pinheiro, Paulo Vanzolini, Pelão. Era habitualmente encontrável no balcão do Bourbon Street Jazz Club ou no Tom Brasil, sempre prestigiando os shows dos amigos. Tinha uma estratégia: assim que alguém começava a falar mal de alguém na mesa, pegava sua taça e levantava de fininho. Se mandava.

Quando fez 88 anos, Zé Nogueira produziu a própria festa. Imaginou-se como um Einstein tropical na foto do convite, e estilizou os dois números 8 para que parecessem dois símbolos do infinito. Ao ser internado agora com pneumonia (a terceira em poucos meses), ele chamou o amigo Juan Troccoli, dono da casa Azúcar (onde festejava seus aniversários) e lhe confidenciou, debochadamente: “Puta merda, eu não devia ter colocado aquele infinito no convite do meu aniversário”.

O leitor pode estar pensando: e onde ficou o lenço de Louis Armstrong? O fato é que Zé Nogueira amava mais os amigos do que a memorabilia, mais do que as coisas. Ele deu o lenço e o programa do show a Juan Troccoli há alguns anos. Juan enquadrou o lenço e o programa e guarda em sua casa – possivelmente, é uma das maiores relíquias da era do jazz. Porém, Zé Nogueira não vivia de relíquias, mas de uma fome colossal pelas festas do espírito.

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1 COMENTÁRIO

  1. Zé nogueira o que eu tenho a falar meu bisavô em toda a minha vida nunca escutei alguem falar mal dele pelo contrario só coisa boa amo ouvir as historias que minha vó conta sobre ele, na Ilhabela ele fundou junto com seus amigos a Padre Anchieta a primeira escola de samba de Ilhabela, e bom toda vez que ouço ou leio algo que me lembre dele eu choro a mlr pessoa que eu ja conheci foi ele, lembro que eu estava em uma excursão com a escola e vi pelo instagram meus pais só iam me dizer qd eu voltasse mais eu vi e comecei a chorar no meio de um onibus chegando no masp todas as lembranças que eu tenho dele são boas as fotos e eu vou guardar para o resto da minha vida.

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